You have to ask yourself what brought the person to this point

domingo, 9 de dezembro de 2012

what a lady


era à noite, já tardia, quando Megan adormecia depois de fazerem amor exasperadas que Amber fugia do ninho e se esquivava para um local secreto, profundo e sombrio, entre a alma e o desejo, onde se entregava a si própria, aquela que sentia outras coisas e que não tinha a capacidade de fingir. Compreendia que se enganava, em parte a si mesma, mas outro seu lado não estava enganado e gostava. Gostava de Megan e do que representava estarem juntas e amarem-se uma à outra daquela forma, fazerem amor daquela forma, andarem de Alfa, bronzearem as pernas e ouvirem jazz daquela forma. O mundo parava e não se lembrava tanto, só que por vezes, era inevitável, e a rotina fazia-a recordar ainda mais. Era uma parte de si que estava enterrada num sítio ilegítimo, fazia-a vacilar e era só nesses momentos, quando a amante adormecia, que ela conseguia rastejar para fora da cama, na sua independência e procurava o espaço que era seu, o desejo que a consumia, a saudade que já não era mera recordação, a folha do papel onde escrevia, onde queria escrever, a cassete de jazz que era só sua e esquecia. Esquecia quem era, onde estava, porque ali estava, esquecia a nova Amber, a que queria ficar e queria amar a sua gémea e voltava a querê-lo a ele. Queria-o a ele e não desejava mais nada.
-Consegues ver-nos? – perguntou-lhe Megan.
-Sim. E tu? Consegues ver-me?
-Já só nos vejo a nós. Somos a senhora mais elegante do mundo, sabias?
Amber riu-se.
-Sim. Eu sei.
Megan beijou-lhe os olhos e depois a boca e murmurou:
-Esta casa nunca mais vai ser a mesma coisa, nunca mais vou conseguir deixar de ouvir esta música e cheirar o teu corpo, a tua pele, beijar-te os olhos.
-Não me vou embora.
-Não estou a dizer que vais. Estou a fazer uma coisa diferente, estou a imortalizar-nos. Isto já não vai sair da minha casa nunca mais. – beijou-a novamente – amo-te.


Conto 10: Glenmorangie, História de uma Garrafa de Whisky

sábado, 1 de dezembro de 2012

sorria, tentadora.



O quarto era tomado por uma escuridão pálida e a luz esbranquiçada que provinha do exterior tornava-se mais fosca e, subitamente, a penumbra transforma-se em imensidão azul. Só assim se viam os dois corpos traçados por riscas de cores variadas, muito despreocupadamente pintadas, as palmas das mãos carimbadas pelo corpo em tinta invisível, o rasto que perdurava, a fragrância,  a mais voluptuosa, o sentido que não desaparecia, nos corpos dos dois seres, pelas paredes, o cheiro que impregnava e o brilho riscado e mesclado de um universo e de uma percepção  que não seria possível de entender na imensidão do negrume da escuridão. Pelo tecto, sorria, tentadora, o sinal pouco implícito de uma seta que atravessava o estuque pérola da parede em direcção aos corpos sem que estes se apercebessem, descia subtilmente e ia-se instalar sobre a pele, junto aos sexos, a provocar uma pressão desmesurada, a potenciar um desejo cada vez mais progressivo. Amber acordava e agarrava os seios com as mãos, sentia um calor inevitável que se ia intensificando e subindo para se transformar num aperto na garganta, profundo, mas existente, que não a deixava respirar, que lhe aquecia o corpo e a palma das mãos e quando dava por si, esfregava-se no corpo de Megan, incansavelmente, e esta acordava e saciava-a, com amor e ternura, mas sem animalidade feminina. Uma loira sobre a outra, os cabelos da cor do trigo entrelaçados pela fricção dos corpos, os olhos dementes, a fundirem-se, como se a união dos sexos e do suor que pingava um sobre o outro fosse transcendental. Dois demônios a respirarem o mesmo ar, a beberem da mesma saliva e a seta lá no meio, a fazer coacção para que aquilo não parasse e não parava.

-Esta luz está dentro do quarto, a ver de dentro para fora. Consegues vê-la? Só de dentro para fora. Um sitiozinho escondido. - 
proferiu Megan e Amber sorriu e levantou-se.

 

Conto 10: Glenmorangie, História de uma Garrafa de Whisky

terça-feira, 13 de novembro de 2012

I lied. undo me in a whisper


-O que é que vieste buscar? – pergunta-me o Led, denotando uma ausência de interesse pela minha presença improvável. Observo-o com os dois olhos ansiosos e predadores, a minha boca sente um gosto seco e intragável, toda a minha placidez é ansiedade. – Certamente não vieste jogar poker.
Focalizando a pressão na ponta dos dedos pintados, levo-nos até à cozinha do porão ilícito e começo a devorá-lo lentamente com os dentes e a língua. Subitamente um corpo rígido e erecto transforma-se numa massa gelatinosa entre os meus braços famintos e ouço-o arfar e vir-se, sucessivamente, alimentando-me de um amor facultativo e desmesurado. Um deslize lubrificado do pénis dentro de mim e as lágrimas começam a pingar-me o peito franzino. É o fim da festa, Figgy. O fim de tudo. Aprisiono entre as mãos erguidas o membro que, em sentido, se impõe revelando as suas formas tão perfeitas e trabalhadas quanto as da face ornada e manuseio-o até ele esguichar em todas as direcções e em alternantes intensidades. O Led solta este gemido altivo e tremendamente voluptuoso para me cair para o colo qual criança cansada implorando por afagos e carícias. Beijo-lhe a tez e observo-o enrolado em volta do meu peito reduzido, observando-me com olhos estouvados.
-Eu sabia que faríamos amor. – diz ele, numa peripécia calculável. Eventualmente tudo se desmorona. Sim, as arquitecturas estão fracamente construídas, necessitamos de melhores empreendedores. Procuro no bolso o saco de pó que habitualmente lá se encontra e cheiro as linhas uma a uma com calamidade. Ergo-me de joelhos e beijo-lhe o rósea dos lábios ainda ofegantes e já vermelhos da auto-pressão provocada pelos dentes.
-Eu não faço amor. – cuspo, enquanto me afasto agitando as nádegas mas sem orgulho e tirania. Compreendo enquanto me afasto do edifício que as lágrimas já haviam secado há muito tempo e que tudo não passa de identificar os problemas e de saber como os censurar e não complexificar. É tudo muito mais simples quando não nos preocupamos. Mais tolerável.

Suntory Yamazaki Single Malt Whiskey Conto 7, História de uma Garrafa de Whisky

sábado, 3 de novembro de 2012

blowing kisses


Caminho pelas ruas em grupo porque arrastamo-nos sempre numa sociedade selectiva e elitista de membros poderosamente influenciadores. O Figgy acelera o passo pesado junto ao meu caminhar solene e cansado e entrelaça os dedos cuspidos nos meus, partilhando essa saliva suja pelas nossas epidermes agora contagiadas. Observo-o enquanto me sinto arrastada pela demência e autoridade dos nossos passos. Possui um caminhar demasiado tentador. Movimenta-se num arrastar tão suave e dominador, é um tirano. Fuma um cigarro que ainda agora acendeu e cuja ponta queima na noite sombria para depois me sorrir docilmente enquanto pisca um olho castanho e me sopra:
-Adoro-te. – mas as palavras esvanecem-se no ar. Aperto a mão molhada contra a dele e cerro os dentes dentro da boca com tamanha força que as gengivas endurecem e as paredes bocais se rasgam em pequenas fendas inofensivas mas desconfortáveis. Não fazes ideia, sussurro.
-O quê, Alicia?
-Nada, companheiro. – diz o Led que domina connosco, na nossa multidão. – Ela não disse nada. Pois não, Alicia?
-Não. Não disse nada. – sussurro e entrelaço mais os dedos húmidos que se difundem.
A humidade que se despega do alcatrão molhado e que nos embate na cara obriga-me a inspirar profundamente esse cheiro orvalhado que depois diverge e se altera para uma brisa ilícita de substâncias que são inspiradas e cheiradas na nossa aura de diversão.
-Ela é a minha miúda. – diz o Figgy, num tom imperativo e intimidador – É a minha miúda – repete – não a tua. Eu sei quando é que ela diz alguma coisa. – acelera o passo – tu não. – e volta-se subitamente para mim, apertando-me a mão com ternura e auspicia - Diz-me, querida, o que foi que disseste?
-Eu disse – engulo em seco e mantenho um olhar animal – que também te amo.
-Eu sei, babe. – diz, apertando-me a mão e a nádega com a que segura o cigarro – nós adoramo-nos para caraças. Eu adoro-te para caraças. És minha.
Observo o movimentar seco dos seus lábios e estremeço. O amor é um lugar estranho. Não estou certa de saber o que significa. Mas sim, nós adoramo-nos para caraças. O Led silencia-se e observa-me nesta posição dominada. Olho-o com curiosidade. Ele afasta-se mas mantêm-se ao meu lado, na mesma posição. Sopra-me um beijo.


Conto 7: Suntory Yamazaki Single Malt Whisky, História de uma Garrafa de Whisky

terça-feira, 30 de outubro de 2012

leavingthat


            -És uma rapariga estranha, sabias? – Fita-me incrédulo, com os olhos cinzentos brilhantes e altivos. Os boxers brancos estão deixados no chão e o pénis flácido bate-lhe nas virilhas esteticamente embelezado. – Mas não me importo. Queres sair, não queres? Então sai, por favor. Sai. Estás completamente à vontade para o fazeres.
            O meu olhar desmorona-se e deixo de nutrir a mesma necessidade de fugir e de não voltar. Subitamente quero ficar e dormir cá novamente, envolta nos seus braços, no calor de um corpo humano, enriquecida com a falta da memória da noite passada, com a ausência de uma projecção de um futuro, sem expectativas. Quero tudo excepto sair e é a única coisa que me parece ser possível.
            -Sai. – volta a dizer-me, já sem sequer me fitar e cerro os punhos porque é necessário manter-me controlada. Fico assim, indiferente, à porta do quarto, ainda com o papel envolto nos dedos e a maçaneta da porta na outra mão. Controlo-me. Dirijo o olhar para a porta onde as expectativas se projectam e saio, fechando-a atrás de mim. Só que quando saio estas ficam lá dentro. Antes de descer os degraus para o rés-do-chão encosto-me à porta de cócoras e choro. Levanto-me e sigo caminho enquanto acendo um cigarro Malboro que fumo até encontrar o portão onde o James me espera paciente e pronto.
            -Bom dia, Miss Falloon. – cumprimenta, ainda com o jornal entre as mãos e com um sorriso branco.
            -Bom dia, James. Podemos, por favor, ir embora o mais rapidamente possível?
            -Claro, menina. Qual é o destino?
            -Para casa, por favor.
            Duas lágrimas descem-me até ao queixo mas arduamente são perceptíveis graças aos óculos escuros.
            - Está tudo bem, menina? – pergunta-me num tom de voz suavemente alertado. Limpo as lágrimas mas novamente outras duas escorrem. Fito a janela do quarto do Steve de onde sinto que me observa, já com os boxers vestidos, o cabelo negro despenteado e os olhos cinzentos muito brilhantes e sem expectativa. Olho para o espelho retrovisor onde também o olhar de James me estuda.
            -Ficará. – digo-lhe. Sem expectativa.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

my old soul


-A música escocesa de noite alcoólica em melancolia é só o que reveste o quarto. Começo a pensar que já tivemos muito longe disto, passou algum tempo e estamos juntos neste quarto. O som torna tudo muito fácil. É quase como se embebesse aqueles scotches pela sonoridade. Bêbeda na lua. Talvez também não seja assim tão difícil, talvez também não seja assim tão difícil falar e de qualquer das formas talvez até consiga tentar.
            -O quarto está mais seguro agora. A minha filha também o sente. Sorrio-lhe calorosamente e sabemos que não há problema em falar. Observo-a enquanto ela se levanta e se senta no cadeirão a meu lado. 

-Nos seus olhos castanhos brilha o esforço em fazer com que eu fale. Exponho-me mais, mas calmamente. Disse-lhe sobre os meus amantes, sobre como nunca podemos ficar juntos, como nunca me apego verdadeiramente, sobre como sou complicada e problemática, sobre como estou tão caída em mim que não sei sair. Disse-lhe sobre o que passou, sobre ser pequena, sobre nunca ter sabido como era ser pequena. Seria bom? Todos parecem ter apreciado. Nunca me senti muito pequena.
-Deve ser triste.
-O quê?
-Ter a alma velha.







Conto 5: Laphroaig, História de uma garrafa de whisky 

terça-feira, 16 de outubro de 2012

I'm sorry


É tudo demasiado erótico para ti. Para o fumo do teu cigarro e para as gotas do teu whisky. <<É tudo demasiado erótico para todas as pessoas. É tudo demasiado. Entende a dimensão de demasiado?>> Não entendo a dimensão de nada. As coisas estão “desimensificadas”. Eu encontro-me desimensificada. Perdida. Embebida em whisky e cigarros. Adormecida num estado de despertar constante. Inexistente numa existência imensurável. Só que, ironicamente, isolada. Ausente de todos os passos grandiosos que tu dás, de todas as instâncias sacras que tu retrais. De todas as ocultações que tu, com tirania, exploras. Sou a tua última indagação com êxito. O desenlace será previsível a partir de agora. Já conheço todos os finais dos teus começos, todos os ataques dos teus combates. Conheço o sítio onde vives sem nunca ter, porém, chegado lá. Broto novamente e cesso este parágrafo, com o resto da bebida que se balança no copo e acendo um cigarro. O que se iniciou como um projecto de libertação transformou-se numa eloquência colossal e eu sei que não evito brindar demasiado. Não gosto de partilhar essas coisas. Nem tu. Sabes que estou correcta. Lamento não ser o teu papel.











Conto 4: Ballantines, História de uma Garrafa de Whisky

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

a nu. naked.


-A dor envelhece as pessoas, arrasta-as para o cruel destino que é a fatalidade. Gostaria de me ter sentido eterna durante mais tempo, talvez um pouco antes de me surgirem as primeiras rugas na cara, ainda tímidas, a vincarem o que seriam os meus olhos cinzentos tímidos, ou a contornarem as expressões do meu sorriso, no meu peito, em redor dos mamilos, nos nós dos dedos, a revelarem a decadência da idade. Uma mulher pode mudar tudo mas não altera as mãos. Sinto-me ficar velha, sinto-me perder os últimos raios da juventude, da inocência. Penso que se terá extinguido até à sua última réstia. Foi impiedoso, cruel e desnecessário e eu deveria viver sem conhecer esta sensação de envelhecer, ou pelo menos, desconhecer que pode ser uma sensação, tão precocemente. E não vos culpo mas também não vos admiro. Admiro-te mas não por isso, não por me protegerem da decrepitação do meu espírito. 

-Ela tem de perceber e sinto a necessidade de lhe explicar mais justificadamente o porquê de não conseguirmos dialogar, de não lhe conseguir expor o que sinto, a minha própria incapacidade de me aproximar dela. Tens de perceber. Um pai não se aproxima porque os pais nunca sabem a verdadeira dimensão do caminho a percorrer e parece ser tremendamente distante.

-Incompreensivelmente curto.

-Não poderia haver mais intimidade que isto, a nossa exposição cruelmente ausente de tabus. Se te revelas, profundamente escondes tudo o resto. Tens um espírito que paira leve sobre as nossas cabeças e não permites que se revele. Não me temas. Tens que ter conhecimento de que os pais nunca sabem. Nunca sabem nada. O porquê de não conseguires falar é me tanto um mistério como a causa para não forçar esse abeiramento. Os pais nunca sabem. O caminho pode ser tão curto mas também tão longínquo. Ouço-a lacrimejar. Limpa as duas lágrimas que lhe rolam pela cara. Observa-me do canto do quarto.

-Eu queria ter a capacidade de te contar tudo.

-Assim tão simples?

-Assim tão simples. Contar-te tudo e pronto. Consigo detetar-lhe na expressão dos olhos aquela mágoa que noutras ocasiões já havia presenciado. Não é o olhar da intolerância, ou da incompreensão, é o olhar da misericórdia. Não me castiga, nem me repreende, nem me afasta, chora só, ao de leve, por ser incapaz de agir, por não conseguir chegar até mim, por sentir o primeiro odor da inércia, por estar estagnada, com tanta imobilidade. Não somos assim tão diferentes. Lembras-te do que nos trouxe até aqui?

-A condição arbitrária que nos fez percorrer estes quilómetros foi a distância que delimitava duas pessoas que não deveriam conhecer essa distância. Sempre foste muito próxima de mim, sempre te soubeste expressar, até quando me confessaste que simpatizavas mais comigo do que com a mãe, eras frontal e honesta.

-E agora um mudo.

-Pensámos que o whisky e os cigarros iriam resolver. Usar os combustíveis para queimar. O quarto fechado, ia começar o fogo. Longe de tudo, noutra vida. Só tu e eu e carburantes.

-Oh…já me recordo…vínhamos criar a nossa zona de transferência, onde duas pessoas diferentemente sós se conseguem ausentar e apresentar e projetar e entender. Uma zona para os nossos espíritos.

-Recomeça. Volta atrás. O que é que pensas do amor?

-São as questões mais simples que criam grandes impasses entre os seres racionais.

-Quero reunir todos os teus sons. Quero que exponhas o som da consciência, o som da culpa, o da obsessão. Quero que esta zona se crie naturalmente.

-E que chore?
-Podes chorar. Eu sei que choras.
 
 
Conto 5: Laphroaig História de uma Garrafa de Whisky

domingo, 9 de setembro de 2012

mad dogs


O quarto escureceu. Alguém se movimenta na escuridão diante de mim. Vejo as sombras esguias e indefinidas a formarem-se no painel negro que me é perceptível e murmuro dois ou três sons antes de dar um passo em falso e o tentar agarrar. A sombra. Espirra. É um espirro muito ligeiro e propositadamente inanalisável. Pela densidade do ar diria que se trata de um homem, mas os movimentos são notoriamente femininos. Escuta-se um arrastar de tecido pela superfície da pele e é tudo demasiado sensual.

Há uma cadela que se rebola pela minha cama e diz que quando quer se consegue transformar em gata, digo-lhe que sou um céptico e depois ela faz com que eu não me mexa mais da cama. Nem sequer me deixa chegar ao pé do meu saxofone, a cadelinha. Diz que ali é tudo dela e que se quero continuar a vê-la tenho de deixar de ser narcisista. Não são as minhas trombas a única coisa de relevante no mundo. Digo-lhe que nem sequer sei o que é que é relevante. Tipo a palavra… relevante…Depois imploro mais um bocadinho e digo que isto é deveras importante e que quando um músico sente a música a fluir-lhe pelo corpo ele tem de a agarrar e de fazer amor com ela para que ela não se vá embora como uma cadelinha ingrata. Ela diz que não se importa, que quem já tem uma cadelinha não precisa de duas. Mas ela não sabe que quem tem uma cadelinha precisa sempre de mais do que uma.
 
 
Conto 6: Ardbeg, História de uma Garrafa de Whisky

sexta-feira, 22 de junho de 2012

was I? was I exact?


E não nos dizem todas as doutrinas que possuímos a incumbência de sermos ambiciosos? Eu sou tão, tão, tão ambiciosa. Certa vez tentei contrariar a irreversibilidade da vida. Não sabia eu mas fundamentalmente estava a contrariar o próprio propósito da palavra – irreversibilidade. É o meu outro problema com prefixos “i”. Sempre que se avistam os “i’s” é porque qualquer tentativa de infracção é, novamente, i-mpossivel. Mas como observas a minha ambição é desmesurada, incrível, demente. Tento fazer tantas mais coisas com este banal e mundano corpo que todo o universo cai em cima de mim, pela impossibilidade de tais acções. O mundo, afinal de contas, é meramente proporcional, eu sou aquela que está totalmente desfeada. As totalidades são formadas através de fragmentos mas os que me constituem são desconexos, desalinhados.
Recordo-me de ti em momentos de impossível repercussão. Sinto a tua falta em momentos de momentânea nostalgia. É tudo tão errado. Descontrole. O ser humano a falhar anuindo à tentação. Isolei-me do mundo, reservei as parcelas que não deslizaram e fugidias me escaparam dos dedos dissipando-se no mundo em meu redor. Estou disposta a enclaustrá-las dentro de mim. A minha terapeuta diz que é uma loucura, que não sou ambiciosa quando o tenciono fazer mas que sou ridícula. Puramente ridícula. Que as pessoas se perdem e evoluem – naquele sentido quimérico que eu dou à palavra, sabes? Racionalização: que a evolução é um processo de racionalização e de alteração, que repara ou te arrasta até um total retrocesso às origens simplórias da nossa existência. Tu tinhas o terrível hábito de ser bastante mais racional que eu. Eras escrupuloso e sistemático. E toda a minha presença residia neste plano grandioso de toda uma existência visivelmente proporcional, fui exacta?




conto 4: Ballantines, História de uma Garrafa de Whisky

sexta-feira, 15 de junho de 2012

-fuck it.


Seguiram-se três dias e só agora acabei de tomar o meu primeiro duche. O cabelo molhado espalha água pelas costas, que húmidas e escorregadias, vão permanecer assim até o roupão branco de algodão as secar. O Steve surge pouco tempo depois de mim e ainda molhado seca-se a uma toalha azul escura e procura a roupa lavada que o motorista lhe havia trazido no dia anterior após ter afirmado que se iria embora definitivamente, e na altura haviam já passado 2 dias. Agora foram três e ele ainda não partiu e a casa parece mais cheia e preenchida. Enrolo um charro e o seu olhar atento segue-me e o ouço-o suspirar e prosseguir.
            -Vou-me embora Leigh. Se fumo mais um desses já sei que só volto a sair e a vestir-me amanhã pela mesma hora.
            Sorrio sem despegar o olhar da mortalha e da erva.
            -Não. Estou a falar a sério. – diz-me. – Já sei como isto vai acabar. Vou ter mesmo de ir. Vem despedir-te de mim.
            -Não precisamos de nos despedir. – digo, passeando enquanto enrolo a mortalha em volta da erva – eu sei que vais voltar.
            -Não preciso voltar.
            -Não precisas mas vais.
            Colo as duas faces da mortalha e finalizando o charro acendo-o. Ele dá dois passos na minha direcção mas arrepende-se e recua.
            -De certeza que não queres? – sugiro, acenando o charro seguro entre os dedos. Ele suspira e olha de relance para a porta. Estudo a sua indumentária constituída sobretudo por peças Vitton.
            -Não, Leigh. Preciso mesmo de ir.
            Compreendo e aceno, dou uma passa, e fixo o olhar no seu. Preparo-me para que ele saia e tento imortalizar esta última ideia da sua silhueta junto à ombreira da porta, com o casaco ao ombro e o cabelo naturalmente despenteado. Torna-se desnecessário fazê-lo porque ele atira o sobretudo para o sofá e caminha na minha direcção com um sorriso convicto e com os dedos estendidos na direcção do cigarro de erva.
            -Que se lixe.


História de uma garrafa de whisky, conto 3: Jameson Irish Whisky 

quinta-feira, 14 de junho de 2012

ela levita, quase fada.



Abro-lhe a porta e espero que ela entre. O cabelo é alourado, de um tom quase esbranquiçado, místico; os olhos são negros e têm um brilho distante, fora deste mundo. Digo-lhe que não abriria a porta a ninguém àquelas horas, mas que o cheiro dela me levara a fazê-lo. Ela não sorri e entra. Segura nas mãos um livro que está repleto de anotações feitas a lápis, juntamente com as frases sublinhadas das quais essas anotações resultam. Diz-me que ouvira falar de mim e do meu quarto e que o quis ver de perto. Eu peço-lhe que se dispa e ela fá-lo. O seu corpo é magro, mas não excessivamente, a pele é de um tom muito claro, desbotado, mas mundano. Quando me aproximo e a beijo, ela diz-me que os meus lábios sabem bem, que o sabor do whisky é evidente. Depois volta a vestir-se e arrasta-se até à varanda. Diz-me que a noite é diáfana vista dali e eu pergunto-lhe o que quer dizer com aquilo. Diz-me que não tem a certeza, que o meu quarto se assemelha a um sonho. E depois ficamos a olhar para a lua, durante horas e horas, até ela desaparecer, sem proferir uma única palavra.




História de uma Garrafa de Whisky, Conto 1: Jack Daniels

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Sax Play


-Não me puxem! Eiiiiiiiiiiiii

Os ilusionistas entretêm um público de espectadores esperançosos. As aparências desfazem-se pelo ar. Não aguento, rio-me de tudo. Não me puxem, elas agarram-me. 

Começa a sentir-se no estômago, uma espécie de previsão, forma-se, fermenta-se, intensifica-se e depois gira e ebole até chegar a um clímax tão alto e inalcançável que as lágrimas brotam-me dos olhos, pingam e desfazem-se pela cara, as notas soam a uma voz melindrada, É TÃOOOOO MAGNIFIIICO, sei que é esta a sinfonia que tenho de agarrar e trabalhar, piiiim piiim pimmmm Aaaaarghhhh. Pam. Tam. Yeah. La. Ta. Pum. Pum-rrrrrrrrrrrrrrr.

-Chorem! Chorem todos porque este som não vai voltar! É a sinfonia derradeira! Assemelha-se tudo a trabalho amador quando comparado com isto.

-És o máximo!

-Não me puxem! DEIXEM-ME TOCAR! QUERO TOCAAAAAR.

Às vezes assemelha-se a uma vida. Viver dentro da música. Sonhar durante o sono com uma ilusão que não é um delírio, nem uma alucinação mas que infortunadamente também não pertence à realidade. O que é que interessa além disso? A realidade enfadonha? Não há gatas, há mulheres. Não há mestres e génios, há artistas. Não há sinfonias, há músicas. Mas há…há um saxofone…


Conto 6: Ardberg, História de uma garrafa de whisky

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

drink until you burst into fire

Custara-lhe mais do que teria considerado conciliar o acto de tolerar com o acto de enlouquecer completamente. Custava-lhe aguentar as estribeiras, era confessável, mas rapidamente aprendeu a fazê-lo e ao fim de algum tempo proporcionava-lhe uma enorme satisfação observar o quanto as situações se haviam alterado, invertido até.
Susan já não chorava, nem no caminho para a escola, nem no regresso a casa e, muito menos, no corredor que dava acesso à garagem. Ao invés disso sorria. A vida parecia agora tão meramente…suportável. “Gosto de te ver assim, olho azul, as coisas começam a correr bem, as miúdas precisam de sentir que te aguentas, que consegues lidar com as coisas. Como é que esperamos que elas lidem com os problemas da vida se não somos fortes o suficiente para lidarmos com eles? Somos o modelo a seguir, temos de transmitir uma imagem de estabilidade.” E o resto Susan deixara de ouvir. Sorrira e dissera-lhe que compreendia tudo isso, que de começo custara de facto mas que agora as coisas eram todas mais fáceis. Nunca nenhum deles soube certamente porquê, porque é que as coisas eram agora mais fáceis mas a verdade é que as garrafas de Johnny Walker continuavam a desaparecer do bar, bebidas numa insaciável cede que aniquilava os advertências todas do que era a sua vida de resigno.
Durante a noite, continuava a seguir a filha numa vigia de puro deleite e adoração pelo que esta fazia; de fascínio. E foram variadas as ocasiões em que se viu durante o dia-a-dia a observar a filha com esses olhos de mãe apaixonada, de mãe orgulhosa. “O que é?”, dizia-lhe Teri, incomodada com o olhar patético da mãe, quase inebriado por essa paixão platónica. “Nada. Já não te posso observar?”, respondia Susan, de modo a abafar o assunto. “Poder podes mas parece que estás apaixonada por mim.”, replicava Teri, “E estou. Estou muito apaixonada pela minha filha”, dizia seguramente Susan, que em tudo tencionava verbalizar exactamente o que afirmara. A única diferença é que não estava apaixonada pela filha, mas sim pelas oportunidades que esta lhe proporcionara. Pelas ínfimas possibilidades. Pela alternativa à rendição auto-comiseradora. Havia muito mais que isso. Ela precisava de muito mais que isso. E agora condição com convicção, falava com convicção, dirigia com convicção, fazia amor com convicção. Dedicava-se ao mais ínfimo detalhe da sua existência com tamanha convicção, com tamanha dedicação, com fé. Para depois durante a noite se poder entregar ao seu devaneio predilecto, para beber até as coisas parecerem inexistentes. Era a bebida analgésica. Era a promessa. O desbobinar. O sabor quente que lhe lembrava as coisas que faltavam na terra, na vida, na casa, nos traços de carácter da sua própria pessoa. O whisky era tudo. Era quente. A filha era um mundo. Uma ilusão. Um capricho. O amante era perfeito. Era mundano e perfeito. 


Conto 2: Johny Walker, História de uma Garrafa de Whisky 

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

whiskerezado aqui e ali; ali

Fomos sempre caindo um no outro, colidir no mesmo liame, na mesma conexão impossível. Porque terá sido? Qual foi a causa autêntica? Penso que nos fazia sentir mesmo alguma coisa. Chegava a fazê-lo. Chegávamos a sentir. Ainda que apenas o desespero de sentir. A imensidão do que ansiávamos ser a fulminar no peito. Questiono-me se não existiu nada mais. Mais do que esse desespero ridiculamente aflitivo de sentir. Está muito pouco lúcido. Pouco claro. Fodemos isto. Colidimos tanto nessa loucura desmesurada, na necessidade de sentir, na formação de dogmas e ideologias e teorias que no final em nada nos auxiliavam porque guiávamo-nos exclusivamente pelos nossos instintos cansados e desgastados e acabávamos por formar grandes compilações de ideias que só nos puxavam ainda mais para a sua origem e para o seu verdadeiro significado e onde é que elas seriam realmente funcionais ou úteis ou viáveis e depois deitávamo-nos com elas, dormíamos com elas, fazíamos amor com elas, fumávamos e bebíamos com elas e no fim restou tão pouco e esse tão pouco foi-se auto-aniquilando sempre no ambiente whiskerezado da nossa casa onde a história se ingressa agora nas paredes e vagueio e deambulo já sozinha, com o corpo cansado e apercebo-me, tão nostalgicamente, que realmente acabámos sem nada.


Acaba por resumir-se tudo em três ou quatro palavras. Saber distinguir as coisas aprazíveis que nos rodeiam e que nos preenchem e aquelas que se vão sentindo mas que não se demarcam ao passo que o restante vai sendo visualizado de uma barreira impenetrável de um filme sonoro e repetitivo. Estou cansada de falar e de dialogar e de me constantemente repetir. Estou cansada e saturada de tudo o resto. Decaio num espaço de pura ilusão e a sensação da queda é tão tristemente aprazível. Agarro tudo com os braços enquanto me perco. Agarro a água do solo e inspiro o vapor que se dissipa quando piso o chão frio da casa de banho e o calor se derrete com as lágrimas que escorrem e pingam o chão e dois corpos quentes unem-se pelo simples facto de se unirem. Encontro-me nesse vaivém descomedido, entre risadas e gemidos mas as pernas não prosseguem o caminho e a corda que antes era lançada no espaço infalível do ar aperta-se-me em torno da garganta e vai sendo silenciada pelos meus soluços infindáveis de pequenas chiadeiras que doem mais do que se sentem. Criou-se um espaço entre mim e essas coisas, entre mim e o mundo. O passo é tão ridiculamente curto e lento. Observo-te enquanto andas e te perdes nas divisões de uma casa, com o cigarro a queimar entre os teus dedos de homem grande e as lágrimas quentes a caírem-te pelo rosto vermelho e frio. Necessito abrandar, sossegar o que se dispara da minha boca infalivelmente mas não quero sossegar. Não quero descansar. Nem me quero articular ou findar ou descobrir. Qual é a sensação de estar dentro de mim? 




Conto 4: Ballantines, História de uma Garrafa de Whisky

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

decades

Adormeço algures durante a tarde e desperto em meados da noite, com o toque quente de duas mãos duras. Não sabendo a quem pertencem deixo que me envolvam em dois braços esguios e também eles duros e cheiro um perfume que me recorda dois corpos em simultâneo. Um odor.
            -Steve…
            -Psiuu. – diz, tapando-me os lábios com a palma dos dedos molhados. – Estou tão bêbado baby.
            -Como é que entraste aqui?
            -Ó… – ri-se – como é que entro sempre? Hum? – despe-me as cuecas e procura os meus pelos púbicos de modo a que os enrole entre os dedos como frequentemente faz – como é que entro sempre? Como é que faço sempre? Hum? Hum?
            -Pára. – digo, afastando-o do meu corpo.
            -Oh, vá lá, primeiro queres sair da minha casa sem te despedires de mim e agora recusas passar a noite comigo? O que é que se passa contigo, miúda?
            -Estou cansada, Steve.
            -Cansada não é a desculpa. Não pode ser a desculpa.
            -Porquê? Porque é que não pode?
            -Porque – diz, suspirando e parecendo incompreensivelmente cansado também – ainda não chegou a altura de te cansares. Há muito mais que isso. Tem de haver. – e durante o silêncio que se segue procuro o olhar perdido dos seus olhos cinzentos. A tonalidade. O odor. Há um negro impenetrável que reveste todo o quarto. É demasiado tarde para responder pois o seu corpo já tombado em cima do meu encontra-se envolto em soluços ferozes e desarvorados, comandados pela tristeza e pelo vazio e pela ausência. Abordada de surpresa permaneço imóvel enquanto ele se contorce em cima de mim a chorar e pressiono os braços sob a sua nuca, empurrando a sua face de encontro ao meu peito quente chorando também em silêncio. Adormecemos.
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Conto 3: Jameson Irish Whiskey, História de uma Garrafa de Whisky

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Hello Handsome

-És linda – digo-lhe, quando observo o olhar perpetuo com que observa o que se dissolve no meu estômago, quando me deixa espalhar o pó nas suas mamas e inalá-lo com uma virtude animal. E ela é de facto linda! Deus, é tão macia…Esfrego-me na sua pele deleitosa e acaricio-lhe os braços, os lábios, os olhos, os dois seios, as coxas, o abdómen e beijo-os. Tomo-as nas mãos e rendo-me às demonstrações do seu brio singular e da sua essência já tão rara. Seria tão insuficientemente ambiciosa se não a quisesse para mim. Algumas pessoas nunca compreenderão a dimensão de possuir tamanha facúndia entre as mãos, entre os lábios, entre-junto ao corpo. E foi nesse contacto que a senti retrair-se, num movimento brusco e tornar-se hirta, fitar-me e afastar-se, repentinamente incerta da dignidade daquilo que estávamos prestes a fazer. Puxo-a de encontro ao meu peito e intencionalmente faço com que sinta o pulsar contínuo do meu coração, agitado agora pela droga que me corre no sangue. Derramo propositadamente uma ou duas lágrimas que acabam por lhe escorrer para o peito com nostalgia e sinto-a observar-me desoladamente. E é… é linda. Linda enquanto a rolo em mim e lhe dispo a blusa e bloqueamos lentamente a porta da casa de banho com duas nádegas brancas e firmes, encostadas às molas largas, em movimentos circulares enquanto uma língua esguia e lânguida as completa, de outra direcção. Vejo-nos reflectidas no espelho inacabável que suspenso por cima dos lavatórios nos dá uma imagem quase total das nossas pessoas e fundimo-nos no branco cal das paredes. Lambo-a e fundo os dedos nela, a língua, o nariz, enquanto a ouço arfar e a sinto vir-se, na minha cara, com o sexo escancarado que quase me engole. Depois liberto-a das mãos e baixo-lhe a saia, digo-lhe que vá e que leve os dois whiskies para a mesa só que ela recua e especula-me debaixo daqueles dois grandes olhos azuis que me imploram por qualquer coisa. Sorrio e aproximo-me do corpo que ainda ofega e lateja. Lambo-lhe o peito onde a coca se denunciava e beijo-a nos lábios dizendo:
-Tu és linda mas o que acabámos de fazer põe-te na rua em dois segundos. Finge que vieste à casa de banho e leva os dois whiskies para a mesa. Ninguém vai fazer perguntas. O Figgy vai-te apalpar. Não te oponhas. Ele consegue ser um verdadeiro filho da puta quando quer. – E nisto afasto-me para lavar as mãos e sinto-a desaparecer nas minhas costas. O que resta dela, a escorrer pela parede, a escorrer-me pela boca, pelo esófago. 


História de uma Garrafa de Whisky, Conto 7: Suntory Yamazaki Single Malt Whisky

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

sobre coisas pequeninas, tipo detalhes...


A chuva pinga o vidro da janela e emite um som contínuo e húmido, a sonoridade de um líquido a verter sob uma superfície dura. Ela arrasta a meia do collant negro pela perna comprida, passa-lhe os dedos muito firmemente, possui uns dedos delicados e compridos, estreitos, as mãos de uma dançarina, seduz. Depois passa logicamente os dedos pela outra perna, a arrastar a meia daqueles collants negros pela pele vasta de um membro feminino e torneado. Entrevejo só a sua silhueta na penumbra do quarto, em oposição à claridade lunar que atravessa a janela e mergulha o quarto num misticismo sensual. Tem os cabelos avermelhados longos a caírem-lhe pelos ombros, mas num volume exagerado, que se afastam do corpo num vislumbre parado, em torno da face, de feições muito delicadas, bochechas cheias, um tipo redondo, com o nariz pequeno e delicado, os lábios cheios e sensuais, a transpirarem voluptuosidade. Tem uns olhos pequenos, de amêndoa, mas de uma profundidade esmagadora.
O cenário da sua presença fica-me esquecido ao canto do olho, enquanto a passo e lhe deito um olhar de esguia e sigo em passadas distantes de tudo para a porta da esquerda, a da casa de banho. Ela ainda me olha e sorri-me, as sobrancelhas adelgaçadas a emoldurarem um rosto que me é já demasiado familiar. Revela os dentes alinhados, brancos, perfeitos. “Já viste bem os dentes dele? Não? Oh! Repara! E eu que me preocupo tanto com os meus dentes…” sussurra entre o nevoeiro da noite, com um olhar engraçado. Ele tinha de facto uns dentes acabados.

História de uma Garrafa de Whisky, Conto 9