You have to ask yourself what brought the person to this point

sábado, 3 de maio de 2014

Contaminação

Movimentam-se lá fora, arrastando os membros em passadas consumidas e cansadas. 45ºC. Escorre e pinga um suor corrupto dos corpo que indica a proporção de uma calamidade avassaladora. O suor goteja em porções desmesuradas e densas pela pele sebenta e danificada mas rapidamente se desenvolve e rebola no sentido inverso e lenta vai regressar às suas origens infecciosas. O aglomerado de gotículas que desliza e blinda sobre a textura cintilante do corpo pesado que se movimenta em calor unificado e prepotente. Convulsiona-se num reboliço de psicadelismo alucinatório que progride e se complexifica e vai eclodir numa dança em batuque dos gérmens que deslizam pelos membros fétidos até aos lençóis alagados onde se complementam e anexam evoluindo em espécies tanto mais complexificadas. Persiste um odor hendioso no ar que o compartimento de paredes sólidas arduamente sustém e postumamente emerge pelas brechas das portas e frinchas das janelas onde depois se cruza com uma atmosfera limpida e candida que se balança no espaço vazio. Contaminam-se. Os corpos sãos e imaculados que rastejam desamparados numa sociedade de oportunidades ultrapassadas e condicionantes, programadas num jogo de passagens assinaladas em tempos e espaços decompostos pela noção irreal de conjunto, de ideia, de causa, de vida. Não há noção sem igual.
A aniquilação da temperatura amena é substituída pelo calor avassalador e embaçante de 50ºC que sobem a pico por uma ideia impalpável de sentido crescente cuja direcção sobe de forma estável e constante e, claro, numa direção exclusivamente crescente. Estrebuchavam nessa formação húmida de fluídos transpirados os germes originários da contaminação suprema. Fulmina um desagrado borbulhante  que se alastra pelas zonas inalcançáveis do corpo e dos centímetros e metros que percorrem numa velocidade extasiante, deformando o espaço que vão deixando para trás, quais espermatozóides irradiados em direcção ao ovário receptivo, prestes a fecundar.

O Quarto do Óscar, 2011





















domingo, 30 de março de 2014

de noite, nos medos, com os minutos.

um homem sentou-se a seu lado e dirigiu-se ao empregado:
-Quero o mesmo que ele está a beber.
Quando ouviu a voz, lembrou-se de alguém, mas a cara não se lhe assemelhava, voltou a cabeça na sua direção e viu um homem jovem de mãos grandes e rosto esplêndido. Lembrou-se que na última vez que o tinha visto, ele tocava piano com uma elegância extrema.
-Homem que tens as minhas mãos…. - contemplou-o na luz quente do bar e achou-lhe a voz muito arrastada e tentadora. - … tens sonhado?
-Sonhado? – Respirou James, vexado.
-De noite, nos teus medos.
James baixou a cabeça e aproximou-a da superfície vermelha do balcão, sentiu um peso terrível abatê-lo.
-É incrível – suspirou – mas não me recordo.
-É uma pena… – disse Daniel – …mas hoje vais sonhar.
-Porque é que estás aqui?
-Porque a vida é formada de ocasionalidades.
James olhou para ele e sentiu qualquer coisa de anormal, uma aura praticamente inalcançável. Viu três reproduções do mesmo homem sentadas a seu lado.
-Porque é que estás a usar as minhas mãos?
Daniel olhou para os dedos compridos e inspeccionou-os dos dois lados, depois voltou o olhar para James e semicerrou os olhos.
-Porque as coisas nem sempre parecem o que são.
-Sr., é mais um whisky. – pediu, James.
-Dê-me outro igual. – acrescentou, Daniel.
O barman serviu os dois homens e encostou-se na pose anterior, a observá-los friamente.
-Quando é que vais voltar ao trabalho? – inquiriu, o rapaz.
-Não sei…não sei o tempo de nada.
-O tempo… - Daniel olhou para a parede do estabelecimento onde surgiram quatro relógios idênticos, mas com diferentes horas marcadas. James apoiou a cabeça nos antebraços porque a sentia grande e a latejar, mas o seu olhar não se despegava dos oito ponteiros que giravam nos quatro relógios. – Lá, fora da vidraça, não existe tempo.
James olhou para a porta verde por onde ambos tinham entrado, mas não conseguiu compreender a que é que ele se referia.
-É do tempo que me estás a falar?
-É do teu trabalho. Lá fora, já não existe nada. Vais perceber logo à noite quando sonhares.
James olhou-o muito fixamente e achou que era o homem mais espantosamente bonito que ele alguma vez vira.
-Estou a ver-te perdido num sítio qualquer, a usar as minhas mãos.
-Está na hora de eu me ir embora – Declarou Daniel, enquanto se levantava e largava duas ou três notas em cima do balcão. – Mas olha, não te assustes...vai ser a única vez que vais sonhar isto, mas vai dizer-te muitas coisas. Vais perceber muitas coisas.
-Vou perceber-me?
-És um bom observador?
-Quando sei ver.
-Saber ver bem é um dom. Aprende a ver sempre bem.
-Como?
Daniel aproximou-se dele e tocou-lhe ao de leve na sobrancelha.
-Com esses olhos, com olhos como os teus, tens de saber ver sempre bem.
James fechou os olhos quando as mãos compridas do rapaz o acariciaram nas pálpebras.
-E se me esquecer?
-Não feches os olhos e não te esquecerás. É muito simples. Deixa só os olhos abertos e estará sempre tudo aqui para que o vejas.
James seguiu-o com o olhar, até as suas linhas representarem apenas um desenho vago na sua memória distorcida. O rapaz tinha-se ido embora. James levantou-se, mas o empregado dirigiu-se-lhe:
-A conta.

-Ah, sim… - murmurou, enquanto procurava dinheiro no bolso. Deixou três notas em cima do balcão. – Fique com os minutos.


Inércia, 2014

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Se me aqueceres um pé, eu dou-te metade da minha metade.

-O quê? – Jane escondeu a cara no cabelo e mordeu o lábio, tinha uma volumosa massa capilar e olhos cor de avelã. – o que é que foi?
-Tens de te tapar mais, senão distrais-me. – disse James.
Ela olhou para o corpo e viu a forma redonda do mamilo que espreitava pela linha do lençol e realçava na brancura do corpo.
-Isto? Estás a ser muito mesquinho.
-São os melhores seios do mundo.
-Oh… – gemeu ela e deu um puxão ao lençol até este lhe tapar a cana do nariz. Debaixo do algodão macio, sentiu as bochechas ruborizarem e o calor da respiração aconchegá-la.
A chuva caía lá fora com uma violência feroz, cada gotícula embatia na superfície das moradias para, logo a seguir, deslizar e se desfazer no chão. James fechou os olhos, moldou gentilmente o corpo nu à almofada e o calor do contacto começou a envolvê-lo numa sonolência breve. A voz de Jane ecoou pela divisão como uma música:
-Não me vais contar?
-Quando parar de chover.
-Não vai parar, disseram na rádio que ia chover o dia todo.
James suspirou e coçou a cabeça. Fora da cama, sentia-se um frio cortante.
-Não me queres contar? – inquiriu ela.
-Não, porque depois vais ter de guardar esta informação.
-Que mal tem isso?
-Vai-te consumir como me consome a mim.
-Olha, segreda-me ao ouvido se te for mais fácil.
James abriu os olhos e pensou durante um momento. Agilmente, virou-se e aproximou-se dela. O cabelo caía-lhe sobre a almofada, com uma cor luzidia e a pele era de um branco uniforme, imaculado, praticamente sem sinais a deformá-lo. Embora não lhe visse os olhos, imaginava-os grandes, transfigurados pela vermelhidão do sono, a cor da íris mais evidente, meio rasgados e doces. Sentiu a necessidade de lhe beijar as pálpebras mas, ao invés, enterrou o queixo no pescoço dela e inspirou profundamente, sussurrando de forma suave e com voz rouca:
-Ele só me contou metade.
Jane retorquiu, como quem dizia segredos:
-Metade serve. Às vezes só é preciso saber metade.
-Posso contar-te metade de metade.
-Metade de metade não chega. Tenho de saber a metade que tu sabes.
James olhou para o ombro dela e tentou adivinhar a expressão que lhe desenhava a cara. Imaginava, com uma certa curiosidade, o calor que se lhe formava nas pernas e apertava as suas, uma contra a outra, para que a sensação fosse igual.
-Não me vais dar a tua metade?
-Olha, eu dou-ta se me aqueceres um pé.
-Se te aquecer um pé? – inquiriu ela.
-Se me aqueceres um pé, eu dou-te metade da minha metade.
-Mas eu não quero metade da tua metade.
-E se me aqueceres o outro pé, dou-te a outra metade.
Num movimento brusco, ela voltou-se para ele, e os seus narizes roçaram suavemente. Mais do que sonolentos, os olhos pareciam aborrecidos, como se possuíssem vida própria, dois globos oculares cheios de personalidade. Fitava-o de modo intimidante, com as sardas no nariz a adoçarem-lhe a expressão. James observou-a demoradamente e, antes que ela começasse a falar, conseguiu contar-lhe quinze sardas.
-Se eu te aquecer todo, contas-me a outra metade que não me queres contar?
James pensou durante um momento na resposta.
-Conto.
Jane aproximou-se dele e, delicadamente como uma criança, elevou as pernas debaixo dos lençóis e colocou-as sobre as dele. Depois esfregou-as durante uns momentos até a pele atingir uma temperatura agradável. Entrelaçou os pés nos dele e aproximou-se mais da sua cara.
-Agora conta. – Sussurrou, com o hálito quente a evaporar-se no ar frio do quarto.
-Quero dar-te um beijo rápido.
-Não há crueza aqui nesta cama. Estou a aquecer-te os pés e pronto.
-“É com o último que tens de te preocupar”.
-Com o último? – perguntou ela, surpreendida.
-Foi o que ele disse e apontou o dedo para um dos quatro relógios na parede.
-Havia quatro relógios?
-Todos alinhados e com fusos horários diferentes.
Ela voltou o olhar para o peito dele e, cabisbaixa, disse:
-É sempre sobre o raio do tempo, não é?
James olhou-a e sentiu a chuva a cair com perseverança. A certa altura, o impacto era tanto que o vidro da janela parecia quebrar-se.
-Eu disse-te. Agora vais ficar com isto em ti.
Jane levantou os olhos para ele e observou-o com tristeza.
-Tenho medo do tempo.
James abriu a boca e colou os lábios em volta do nariz dela.
-Não precisas de ter medo, é muito simples, o tempo ou te engole ou te deixa de fora.
Jane expirou com força e ele tirou a boca. Na ponta do nariz, reluziu um pequeno torrão de saliva.
-Porquê o último relógio?
James olhou para a janela onde chovia, depois novamente para ela. Encostou a cabeça ao cabelo dela e inspirou.
-Não sei. Não percebi aquele tempo, não percebi aquele relógio.
-Assustou-te?
A boca dela era pequenina e formava um círculo fechado. James riu-se e aproximou os lábios dos dela, sentiu-lhe o calor da sua boca e uma certa humidade na respiração.
-O tempo não me assusta. Mas aquele homem assusta-me.
-Porquê?
-Tem as mãos compridas. Parece que temos as mesmas mãos.

Ela levou as mãos até junto da cabeça e observou os dedos atentamente. Uma lágrima gorda chegou-lhe ao canto do olho e rolou pela face.
-O que foi? – perguntou James.
Jane pensou durante um momento na resposta, enquanto escutava a violência da chuva lá fora. Se fosse outro dia qualquer, arrastá-lo-ia da cama, mas aquele era um dia muito específico. Tinha-se esquecido que existia uma hora qualquer por onde se guiava e o calor da cama envolvia-a num conforto inigualável. Enquanto a lágrima escorregava, pensou que havia já muito tempo que não chorava e, perturbada, deixou escorrer outra. Olhou para James e ele olhou para ela. Viu-lhe a lágrima gorda na ponta do queixo, mas não se pronunciou.
-Agora é a minha vez. – gemeu ela, baixinho e voltou-se de costas. – Aquece-me os dois pés e eu dou-te a parte inteira.
Delicadamente, descruzaram as pernas e James envolveu-lhe os pés com os seus, maiores em toda a sua proporção, enquanto ela fechou os olhos e deixou escorrer mais duas lágrimas gordas.

Inércia, 2014

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

É tudo muito estranho. As coisas ou são enormes ou muito pequenas.

-Porque é que me mandas fechar os olhos?
-Porque acho que vais aprender a ver melhor quando o souberes fazer.
-Mas não é paz que tu me queres dar.
Cara olhou para ele.
-Pois não, mas devias tentar ter algum tipo de paz com essa tua despersonalização.
-Não podem ser três ao mesmo tempo.
-Ora! – exclamou ela, de olhos arregalados – Também não pode ser só um. Deixa as vozes falarem, talvez algumas tenham coisas mais interessantes para dizer do que tu.
-Sinto uma estranheza desconcertante quando dizes isso. É como se não estivéssemos a falar de mim.
-E não estamos sempre. – Cara inclinou-se para o parapeito, ostentava uma postura física solta e ameninada. – Mas não quero que te sintas estranho no teu próprio parque.
James lembrou-se do primeiro dia em que a viu, o cabelo cortado ao nível do pescoço a balançar-se no ar frio do parque, tinha olhos azuis e soava deliciosa.
-Pensava que tinha sido essa a premissa com que nos tínhamos conhecido.
-É sempre tudo como nós queremos que seja. Agora, isto diz-nos demasiado, a ti e a mim.
James olhou para longe e evitou fixá-la. Ela continuou:
-Se deixares de cá vir, vais sentir uma falta terrível de qualquer coisa.
Ele mordeu a língua e fechou os olhos, sabia ao que ela se referia.
-De ti?
-Já achas que vais sentir saudades minhas?
-Não sei. – Ele abriu os olhos e a primeira coisa que viu foi uma imensidão azul apoderar-se dele – Eu gosto de falar contigo.
-É uma corroboração?
-É um facto.
-É só um facto?
-Que queres mais que seja?
-Uma proposta. Ou melhor, uma confissão.
James olhou para ela e viu dois olhos azuis a implorarem para brincar. Veio-lhe à cabeça uma imagem do gato, depois de Jane e, de seguida, olhou para as mãos, compridas e elegantes, impróprias de um homem e sentiu-se completo.
-Tu não me vês como eu sou, vês-me como me queres ver.
-Ora, também tu.
James fixou-a.
-Não. Eu só não quero ver mais nada.
Cara acendeu um cigarro e ele ouviu-o ser fumado, pouco a pouco. Instaurou-se um silêncio que em muito era agradável. Um casal passou de mãos dadas, ouviram-se os passos silenciosos a descolar do chão e Cara disse, como se tivesse estado a suster as palavras:
-Eu quero ajudar-te.
-Porquê?
-É uma necessidade tonta de fazer felizes os homens que não me são nada.
-É só porque não te são nada e não os conheces verdadeiramente?
-É só porque os idealizo. – James viu-lhe um brilho específico nos olhos, que normalmente antecedia a lágrimas – Estou apaixonada por uma idealização romântica de ti.
Ele tirou um cigarro do bolso e sentiu um arrepio agonizante gelar-lhe o corpo. Era curioso porque, em simultâneo, sentia prazer com aquilo.

-Não devias imaginar tanto. 

Inércia, 2014

domingo, 9 de fevereiro de 2014

sono, nos olhos.

Jane olhou para as pernas esticadas no sofá e James aproveitou para dar a volta e sentar-se ao lado dela. Segurou o tabuleiro no colo e estendeu-lho, ela encostou o nariz à bandeja e observou os pedaços com demorada atenção, contorcendo a cabeça para a linha do tabuleiro.
-Não sei por que pedaço devo começar.
-Vais comê-los todos, por isso creio que podes começar por aquele que, no teu instinto, te agradar mais.
-A ordem com que levo cada pedaço à boca é muito importante. Imagina só que, por alguma razão, não os degusto de forma apropriada?
-A noite vai correr-nos mal?
-A noite pode correr incrivelmente mal. Não brinques com sequências.
-Eu não brinco com nada. Estou a cozinhar-te o jantar.
-E agora o cigarro?
-Que tem o cigarro?
-Qual é que deve ser o primeiro?
James olhou para os dez cigarros alinhados em volta das chávenas de café e pensou que, fundamentalmente, ele também não sabia.
-Como é que eu tenho a certeza se estou certo?
-Ora. Essa é a minha questão.
-Ouve… - disse James – eu acho que devíamos tirar um cigarro e pô-lo na boca, sem complexidade.
Jane fechou os olhos e tirou um cigarro. Depois voltou lá com a mão e apanhou um pedaço de queijo que enfiou rapidamente na boca. Ele observou-a a saborear o torrão de queijo de olhos fechados e comoveu-se, estava a juntar-se tudo num cenário lógico e agradável, com a música a corroborar.
-Se aumentares o volume um nível, acho que vou ter um orgasmo.
James riu-se, olhou para ela e viu-lhe as pálpebras cerradas, inundadas de prazer e estremeceu.
-Não estou acostumado a que as mulheres me sintam assim, sem sequer lhes tocar.
-O teu espírito invade-me muitas vezes, não é nenhuma surpresa. Mas hoje, o mérito é do queijo.
-Não sei o que é que estás a sentir, mas parece muito bom.
Levou a mão ao tabuleiro, fechou os olhos e, aleatoriamente, tirou um pedaço de queijo que colocou rapidamente dentro da boca. Enquanto deixava que o amante alcançasse o mesmo estádio que ela, Jane aproximou o dedo da mão dele e acariciou-o lentamente.
-O que é que estás a fazer? – perguntou ele, alarmado mas relaxado.
-Ia contar, apetece-me fazer matemática.
Ele abriu um olho e voltou-o para ela.
-No escuro não se conta. Só se for de cabeça.
-De cabeça são quinze. Mas a minha memória é desconfiável.
-Sempre foste assim, só te lembras do que queres.
-Lembro-me de tudo. Lembro-me sempre de tudo. Tão bem que sei que tens dezassete sinais.
-E mais o quê?
-E que agora a seguir vais dar-me whisky.
Ele encostou a cabeça ao ombro dela.
-Se te lembras de tudo isto, não vai ter piada.
-Presumo que tenhas inserido um fator surpresa.
-Porque presumes isso?
-Porque já sabes que eu me lembro sempre. E que presumo sempre.
-Um desses cigarros tem uma aliança.
Jane afastou-se dele e olhou-o com espanto.
-Nem a surpreender-te sou bom.
Ela riu-se.
-Agora conseguiste. Vai buscar a garrafa. Já tenho fome para o doce.
Ele levantou-se e voltou com uma garrafa de whisky e dois copos.
-Quando encontras uma pessoa sentada sozinha a uma mesa, a beber a tua bebida favorita é porque é para casar.
Ela olhou para ele e um sorriso discreto formou-se-lhe nos lábios.
-Foi isso que pensaste naquela noite?
-Não. – Fez uma pausa e pensou durante um momento - Foi um bocadinho. Primeiro pensei que estava feito.
-Depois pensaste em casamento.
-Depois fiquei com sono, mas ainda te levei para casa.
-Sono? Não te li sono nos olhos.
-Tenho olhos discretos.
-Isso é que é uma verdadeira mentira. Vi neles os primeiros raios de tristeza. Antes, olhavas para mim com timidez.
-Intimidado?
-Não. Com timidez. Uma timidez dócil, quase como se te visse o lábio de baixo a tremer. Como se me estivesses a contemplar, mas com tristeza.
-Porquê tristeza?
-Não sei, se calhar achavas que eu me ia embora.
James tentou lembrar-se, mas subitamente aquele ano pareceu-lhe muito longe.
-Acho que o que acontece é que eu nunca soube olhar para uma mulher.
-Eu acho que era a melhor forma de me olhares. Via-te uma certa nostalgia nos olhos. Era como se fosse observada pela tristeza. As mulheres percebem a tristeza, eu percebia-te os olhos, percebia muito bem o que vias em mim.
-Não te assustava achares que eu sabia que te ias embora?
-O medo é o melhor impulso no início de um relacionamento. E não me fui embora.
-Mas os meus olhos continuam tristes.
-Agora olhas para mim com medo de que me vá embora. Não é a certeza de que vou, é o receio de que vá.
James olhou para ela e depois para as mãos. Era engraçado que, ultimamente, se lembrassem desse tempo com tanta frequência. Pensou que isso poderia significar que estavam a chegar a qualquer sítio. Invocar o início no fim.
-Mas hoje não, James, hoje eles estão diferentes.
-Estão antigos?
-Estão a lembrar-se. Ficas bonito quando te lembras das coisas.
-Eu já não me lembro de quase nada. – disse e voltou a encostar-se.
-As memórias não são o que parecem.
James afastou-se dela e olhou-a com especulação.
-Que queres tu dizer com isso?
-Não sei. Pensei nisso e pareceu-me bem. Acho que é como o tempo. Tens medo das memórias, assim como eu tenho medo do tempo.
-Porque são contáveis?
-Porque te restringem. Se não existisse passado, não estavas chateado com a tua situação no presente porque não tinhas termo de comparação.
Ele sentiu a energia dissipar-se-lhe pelas pontas dos cabelos.
-Mas, James, lembrares-te como hoje é bom. Diz muitas coisas sobre ti.- Ele olhou para ela através do ombro ossudo, viu brilharem-lhe os olhos no meio da luz intimista. – Todo o ritual desta noite diz muito sobre ti ao longo dos anos. Não chores porque já não te lembras, porque intimamente lembras-te. Recordar não é sentir exactamente o mesmo.

-Vais deixar-me cansado para continuar. 


Inércia, 2014 

domingo, 2 de fevereiro de 2014

só a falar de café.

Cheirou-lhe a café e olhou para a cozinha, mas não estava lá ninguém, a sua mente começara a fabricar o odor em devaneio. Olhou em redor e substituiu os ares da casa pelos de há uns anos atrás, transportou-se para uma noite, quatro anos antes, e viu Jane regressar com duas chávenas quentes na mão.
-Era mesmo disto que estava a precisar. – disse ele.
-Se continuas a beber café dessa forma, vou ter de me apaixonar por ti.
-Apaixonas-te sempre por homens que bebem muito café?
-Primeiro provas, depois provas novamente, depois ficas louca.
-Sabe-te sempre ao mesmo?
-É café, mas não sabe sempre ao mesmo.
-E os cigarros?
-Só tornam a vida mais interessante. Sem cigarros, isto era tudo cinzento.
-E quando deixarmos de fumar?
-Vamos arranjar outra coisa qualquer para levar com as culpas.
-Acho-te muito sábia para uma rapariga.
-Sou uma pessoa sensata. E percebo as coisas.
-As coisas?
-As coisas todas. O teu café é especial e mais não te posso dizer.
-Não gosto de ficar a pensar demasiado nas coisas.
-Porque ficarias? Estamos só a falar de café.
James riu-se, olhou-a uma vez, voltou a olhar para ela e depois corou.
-Tens que aprender a ser subtil.
-Eu já sou subtil.
-Isso é o que tu achas. Não há descrição em ti, leio-te as intenções todas.
Ele recostou-se no sofá e ficou a observá-la, era misticamente bela.
-Chateia-te?
-De forma nenhuma. Até acho querido, quereres dizer e não dizeres.
-Mas não dirás isso para sempre.
-Conto que não o farás para sempre.
-Talvez não. Mas talvez fizesse. E então? Deixaria de ser querido?
-Passaria a ser um problema.
-Talvez passasse. Como lidas com problemas dessa natureza?
Jane recostou-se no sofá, levou a chávena à boca e, em seguida, deu um bafo no cigarro. Expirou o fumo e disse:
-Normalmente recosto-me, bebo um café e fumo um cigarro.
-E o problema?
Jane agitou a mão no ar, apontando para ele:
-Esparramado assim à minha frente.
-Que problema tonto.
-Como a maioria deles todos.
-Acho que tens razão, mas devo advertir-te: eu sou um homem problemático. Caótico.
Jane olhou para o ar e encostou a mão à cabeça, parecia absorta nalgo mágico.
-As pessoas arranjam medos esquisitos.
-Acho que arranjam. Uma vez conheci uma pessoa que tinha medo de barrigas.
-Isso não é nada! Uma vez conheci uma pessoa que tinha medo dela própria.
-Isso é terrível.
-É, não é?
-Como é que se salvou?

-Ainda é cedo para dizer. Daqui a uns anos conversamos sobre isto.

Inércia, 2014

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Fecha-os de novo. Vá lá, fecha.

-Sentei-me toda a tarde a pensar se não virias, até que me apercebi que precisavas de me ver com outros olhos.
-Olá, Cara.
-Viste alguma coisa nova?
-Vi-te como uma estranha.
-Mesmo já não sendo estranhos?
-Nunca deixámos de o ser.
Cara suspirou e sentou-se ao lado dele, na relva.
-Observas-me tão detalhadamente, ao longe, que acabas por não ver nada.
-É a observação mais interessante, o que vejo pode não significar nada.
-Mas por alguma razão, sabe-te bem imaginar que sim.
-Não sei.
-Eu sei, deixo de ser uma personagem minha para passar a ser uma tua. Olhas-me com olhos de artista e projectas em mim o que bem entendes, como se fosse moldável.
 James ficou em silêncio, pensou naquelas palavras e concluiu que ela tinha razão. Cara tirou um cigarro de uma cigarreira de metal e voltou a guardá-la, com o cigarro preso nos dedos enluvados, acendeu-o e fumou-o, atirando-lhe o fumo para a cara.
-Mostra-me com os teus olhos.
-Não.
-Não tenhas pena se deixares de me ver.
-Porque teria?
-Não sei, estou só a alertar-te. Normalmente os homens deixam de me ver ao fim de uns tempos. Ao início, veem-me muito bem, com os pormenores todos, depois ficam cegos, já não sabem para onde olhar.
-Deve ser dos teus olhos.
-Vai sempre dar aos olhos, não vai?
-A culpa é da Jane. Estava sempre a falar dos meus olhos e agora não reparo noutra coisa nas pessoas. Ou se tem uns olhos honestos ou as pessoas não interessam nada.
-É por isso que toda a gente sente um incómodo físico quando está na tua presença. - James tentou olhá-la no escuro, mas a noite já tinha caído e não via nada. – As pessoas veem-te e reconhecem qualquer coisa em ti mas nem elas nem tu percebem o que é.
-Isso não soa bem.
-Intimidas as pessoas com a tua tristeza.
-Intimido-te a ti?
-A mim não. Eu intimido as pessoas com a minha beleza.
-Deve ser terrível.
-Ora, é uma questão de hábito. Quando começas a compreender que a tua figura tem um impacto nas outras pessoas, adquires um benefício na vida.
-As pessoas perdem demasiado tempo a decifrar uma coisa inútil como essa.
-Meu caro, a tua figura é o teu mundo, em certa medida. Não vais a lado nenhum sem ela. Neste parque, é a única coisa que estas pessoas veem.
-E aqui no escuro?
-Aqui no escuro, podes fechar os olhos que a vida é sempre igual.
James fechou os olhos e sentiu a mesma calma controlá-lo.
-O que é que sentiste?
-Com o quê?
-Eu sei que fechaste os olhos, era claro que o ias fazer. O que sentiste?
-Que me estava a entregar a qualquer coisa que não queria.
-Fecha-os de novo. Vá lá, fecha.
James fechou os olhos e esperou. Desta vez, começou por sentir, inicialmente, um desapegar da realidade, o negro embarcou-o numa escuridão mais simbólica e mais abrangente, que não era só dos dois olhos fechados. Deixou de sentir a respiração dela a seu lado e o ruído surgiu, quebrando uma junção com a realidade que aquela relva debaixo do seu corpo procurava salvaguardar. Era um ruído que ensurdecia. Cara aproximou-se dele e segredou-lhe sedutoramente:

-Acaba por saber bem, não é?



Inércia, 2014