-Sentei-me toda a
tarde a pensar se não virias, até que me apercebi que precisavas de me ver com
outros olhos.
-Olá, Cara.
-Viste alguma
coisa nova?
-Vi-te como uma
estranha.
-Mesmo já não
sendo estranhos?
-Nunca deixámos de
o ser.
Cara suspirou e
sentou-se ao lado dele, na relva.
-Observas-me tão
detalhadamente, ao longe, que acabas por não ver nada.
-É a observação
mais interessante, o que vejo pode não significar nada.
-Mas por alguma
razão, sabe-te bem imaginar que sim.
-Não sei.
-Eu sei, deixo de
ser uma personagem minha para passar a ser uma tua. Olhas-me com olhos de
artista e projectas em mim o que bem entendes, como se fosse moldável.
James ficou em silêncio, pensou naquelas
palavras e concluiu que ela tinha razão. Cara tirou um cigarro de uma
cigarreira de metal e voltou a guardá-la, com o cigarro preso nos dedos
enluvados, acendeu-o e fumou-o, atirando-lhe o fumo para a cara.
-Mostra-me com os
teus olhos.
-Não.
-Não tenhas pena
se deixares de me ver.
-Porque teria?
-Não sei, estou só
a alertar-te. Normalmente os homens deixam de me ver ao fim de uns tempos. Ao
início, veem-me muito bem, com os pormenores todos, depois ficam cegos, já não
sabem para onde olhar.
-Deve ser dos teus
olhos.
-Vai sempre dar
aos olhos, não vai?
-A culpa é da
Jane. Estava sempre a falar dos meus olhos e agora não reparo noutra coisa nas
pessoas. Ou se tem uns olhos honestos ou as pessoas não interessam nada.
-É por isso que
toda a gente sente um incómodo físico quando está na tua presença. - James
tentou olhá-la no escuro, mas a noite já tinha caído e não via nada. – As pessoas
veem-te e reconhecem qualquer coisa em ti mas nem elas nem tu percebem o que é.
-Isso não soa bem.
-Intimidas as
pessoas com a tua tristeza.
-Intimido-te a ti?
-A mim não. Eu
intimido as pessoas com a minha beleza.
-Deve ser
terrível.
-Ora, é uma
questão de hábito. Quando começas a compreender que a tua figura tem um impacto
nas outras pessoas, adquires um benefício na vida.
-As pessoas perdem
demasiado tempo a decifrar uma coisa inútil como essa.
-Meu caro, a tua
figura é o teu mundo, em certa medida. Não vais a lado nenhum sem ela. Neste
parque, é a única coisa que estas pessoas veem.
-E aqui no escuro?
-Aqui no escuro, podes
fechar os olhos que a vida é sempre igual.
James fechou os
olhos e sentiu a mesma calma controlá-lo.
-O que é que
sentiste?
-Com o quê?
-Eu sei que
fechaste os olhos, era claro que o ias fazer. O que sentiste?
-Que me estava a
entregar a qualquer coisa que não queria.
-Fecha-os de novo.
Vá lá, fecha.
James fechou os
olhos e esperou. Desta vez, começou por sentir, inicialmente, um desapegar da
realidade, o negro embarcou-o numa escuridão mais simbólica e mais abrangente,
que não era só dos dois olhos fechados. Deixou de sentir a respiração dela a
seu lado e o ruído surgiu, quebrando uma junção com a realidade que aquela
relva debaixo do seu corpo procurava salvaguardar. Era um ruído que ensurdecia.
Cara aproximou-se dele e segredou-lhe sedutoramente:
-Acaba por saber
bem, não é?
Inércia, 2014