You have to ask yourself what brought the person to this point

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Fecha-os de novo. Vá lá, fecha.

-Sentei-me toda a tarde a pensar se não virias, até que me apercebi que precisavas de me ver com outros olhos.
-Olá, Cara.
-Viste alguma coisa nova?
-Vi-te como uma estranha.
-Mesmo já não sendo estranhos?
-Nunca deixámos de o ser.
Cara suspirou e sentou-se ao lado dele, na relva.
-Observas-me tão detalhadamente, ao longe, que acabas por não ver nada.
-É a observação mais interessante, o que vejo pode não significar nada.
-Mas por alguma razão, sabe-te bem imaginar que sim.
-Não sei.
-Eu sei, deixo de ser uma personagem minha para passar a ser uma tua. Olhas-me com olhos de artista e projectas em mim o que bem entendes, como se fosse moldável.
 James ficou em silêncio, pensou naquelas palavras e concluiu que ela tinha razão. Cara tirou um cigarro de uma cigarreira de metal e voltou a guardá-la, com o cigarro preso nos dedos enluvados, acendeu-o e fumou-o, atirando-lhe o fumo para a cara.
-Mostra-me com os teus olhos.
-Não.
-Não tenhas pena se deixares de me ver.
-Porque teria?
-Não sei, estou só a alertar-te. Normalmente os homens deixam de me ver ao fim de uns tempos. Ao início, veem-me muito bem, com os pormenores todos, depois ficam cegos, já não sabem para onde olhar.
-Deve ser dos teus olhos.
-Vai sempre dar aos olhos, não vai?
-A culpa é da Jane. Estava sempre a falar dos meus olhos e agora não reparo noutra coisa nas pessoas. Ou se tem uns olhos honestos ou as pessoas não interessam nada.
-É por isso que toda a gente sente um incómodo físico quando está na tua presença. - James tentou olhá-la no escuro, mas a noite já tinha caído e não via nada. – As pessoas veem-te e reconhecem qualquer coisa em ti mas nem elas nem tu percebem o que é.
-Isso não soa bem.
-Intimidas as pessoas com a tua tristeza.
-Intimido-te a ti?
-A mim não. Eu intimido as pessoas com a minha beleza.
-Deve ser terrível.
-Ora, é uma questão de hábito. Quando começas a compreender que a tua figura tem um impacto nas outras pessoas, adquires um benefício na vida.
-As pessoas perdem demasiado tempo a decifrar uma coisa inútil como essa.
-Meu caro, a tua figura é o teu mundo, em certa medida. Não vais a lado nenhum sem ela. Neste parque, é a única coisa que estas pessoas veem.
-E aqui no escuro?
-Aqui no escuro, podes fechar os olhos que a vida é sempre igual.
James fechou os olhos e sentiu a mesma calma controlá-lo.
-O que é que sentiste?
-Com o quê?
-Eu sei que fechaste os olhos, era claro que o ias fazer. O que sentiste?
-Que me estava a entregar a qualquer coisa que não queria.
-Fecha-os de novo. Vá lá, fecha.
James fechou os olhos e esperou. Desta vez, começou por sentir, inicialmente, um desapegar da realidade, o negro embarcou-o numa escuridão mais simbólica e mais abrangente, que não era só dos dois olhos fechados. Deixou de sentir a respiração dela a seu lado e o ruído surgiu, quebrando uma junção com a realidade que aquela relva debaixo do seu corpo procurava salvaguardar. Era um ruído que ensurdecia. Cara aproximou-se dele e segredou-lhe sedutoramente:

-Acaba por saber bem, não é?



Inércia, 2014

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

O que tu e eu temos não tem nome.

-Preferias ter-me seguido durante mais tempo? – ele olhou subitamente para ela – Não te preocupes. Não me sinto assustada. Só quis vir perceber o que te interessava tanto.
-Não foi com maldade, tenho tendência a fixar as pessoas.
-És um observador?
-Não sei.
-Acabaste de me dizer que tens tendência a ver e fixar as pessoas.
-Talvez seja.
-Que viste em mim?
James questionou-se se ela o conseguiria ler através das lentes dos óculos. Sentia uma descontração da sua parte que parecia requerer cautela na forma como ela conduzia aquela conversa, na forma como o fora abordar.
-Pareceste-me… - James puxou um bafo quente do cigarro e expeliu-o, o cinzento do fumo adquiriu um tom azulado – …deslocada.
-Deslocada do parque? - O olhar dela estava inundado de curiosidade.
-Deslocada de ti.
-Ah…estou a ver. Pareci-te vazia.
-Pareceste-me invulgarmente triste.
-Costumas interessar-te por pessoas tristes?
James pensou na resposta durante um momento e retorquiu:
-Não.
-Então foi a primeira vez?
-Sim.
-Quase que me sinto lisonjeada.
Ele puxou um trago do cigarro e perguntou timidamente:
-Posso fazer-te uma pergunta?
-Uma vez que é a primeira vez que isto te acontece, com certeza.
-Porque é que choravas?
Cara olhou para o lago onde se refletia o sol e levou pela última vez o cigarro à boca. Quando falou, as palavras soaram quase musicais.
-Sinto que ando a perder pedaços de mim.
James olhou repentinamente para ela, a rapariga retribuiu-lhe o olhar e sorriu amigavelmente. Ainda se conseguiam ver nos seus olhos as lágrimas secas e a vermelhidão do choro.
-Há quanto tempo?
-Toda a minha vida.
-Andaste a perder pedaços de ti durante toda a tua vida?
-Parece ilógico mas não o é tanto quanto parece.
-Poderás explicar-me?
-Não sei se posso. Provavelmente acharás que sou louca.
-Não.
-Estou-me marimbando para que aches que o sou, na realidade. Talvez o seja, um pouco louca.
Ela viu que ele olhava para a vedação do lago, com os óculos escuros a resguardarem-lhe a verdadeira expressão.
-Não queres tirar os óculos?
-Porquê?
-Porque gostava de ver os teus olhos. Estás a ver os meus e não é completamente justo.
James tirou os óculos e olhou para ela, a rapariga não se expressou inicialmente, depois riu-se e voltou a fixar a vedação.
-Com que então também tens olhos tristes.
-Vês isso nos meus olhos?
-Vejo. Tens os olhos mais tristes que vi hoje.
-Viste muitos?
-Alguns. As pessoas tristes vêm ocasionalmente para aqui. É um sítio adequado à tristeza, não achas?
-Talvez.
Ela recostou-se no banco e calou-se, James sentiu-lhe a respiração e um cheiro feminino que era muito diferente daquele a que ele estava habituado, parecia de certa forma mais agridoce.
-Dá-me outro cigarro.
Fumaram o cigarro em silêncio e os pensamentos seguiram trâmites opostos. Já era tarde e estava a ficar na hora de regressar a casa, a noite cairia brevemente e seria demasiado escuro para fazer o percurso inverso a pé. Havia um reconforto peculiar no silêncio que partilhava com esta estranha. A vozearia de umas crianças ao longe cessou e James aproveitou a deixa e irrompeu:
 -Está a ficar tarde, vou andando.
-Certamente. Adeus, estranho.
-James.
-Foi um prazer, James.
James esboçou aquilo que mais se aproximava de um sorriso e levantou-se.
-Estranho, não achas?
 Ele voltou-se.
-O quê?
-O que tu e eu temos não tem nome. 


Inércia, 2014

domingo, 12 de janeiro de 2014

Cheira-me a café.

James levantou-se e foi buscar o vinil de Serge Gainsbourg, Histoire de Melody Nelson e colocou-o em reprodução na sala. A atmosfera mudou consideravelmente, ela tinha razão, a descontracção de todo o seu ser sentiu-se inclusive na postura física que adotava.
-Isto incendeia-me o peito. – disse ela enquanto pousava o copo.
-O whisky?
-Sabe a saliva, mas arde.
-Não vamos por aí, algumas salivas também ardem.
-Sim, naturalmente.
-Eu prometi que te ia descrever e estás a distrair-me propositadamente. Ou então é a música que me distrai a mim.
-Olha, eu não tenho nenhuma objeção que me leias mais tarde. Afinal de contas era pouco tempo para teres uma leitura fiável de mim.
James inclinou-se mais para o lado onde Jane estava sentada.
-Então que sugeres?
-Que me dês mais whisky e queijo. Que me deixes fumar muitos cigarros.
-E depois?
-E depois quando eu achar que já estou demasiado bebida, vou sentir-me dormente e muda e logicamente irás levar-me a casa. Amanhã, eu procuro-te e jantamos.
-Isto é o início da relação?
-É o mais perto disso.
-Que calorosa que te estás a revelar.
-Não digas isso como se não te tivesse prevenido.
-É verdade, fui alertado.
-Foste mais que alertado. Amanhã vai doer-te a cabeça a pensares nisto.
-Não pode ser assim tão mau, não és demente.
-Cheira-me a café.
-Não te cheira a café.
Jane olhou para James e riu-se.
-Gostavas que te cheirasse a café?
-Talvez gostasse. Mas do que gostava mesmo era de fazer café contigo.
James levantou-se e estendeu-lhe uma mão, Jane agarrou-a e ele ajudou-a a levantar-se. Conduziu-a até à cozinha e encheu o recipiente da máquina de café com água, ligou a máquina à eletricidade e apoiou-se na bancada da cozinha a fixar Jane.

-Com todos estes anos de experiência, já cheguei à conclusão que as taras por café são as piores.


Inércia, 2014

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

quem és tu

-Que se passa, Jim? – Correu na sua direção, com o cabelo molhado comprido a tapar-lhe os ombros – magoaste-te?
Surpreso com a questão, deitou-lhe um olhar inquisidor mas a orientação do olhar dela fê-lo perceber a questão. Levou as mãos à cara e a gota de sangue que já estava espalhada pela ponta do nariz, espalhou-se ainda mais, como se de um creme mal disperso se tratasse.
-Uma pequena ferida na mão, Jane, não é nada.
Ela tocou-lhe suavemente na pele da cara suja e ele observou-a timidamente, mas sem receio. Era fragmentária a forma como chegavam um ao outro, agora já nada acontecia na totalidade. Era incrível a quantidade de pedaços que ele podia isolar naquele momento da sua vida, constituída de parcelas oscilantes e de inclinações dispersas. Afinal quem era ele? Via ali tanta gente intrincada. Lembrou-se das palavras do Doutor Bell, o psiquiatra e psicoterapeuta que o acompanhava há, mais ou menos, um ano e sentiu-se, tal como ele afirmara, fragmentado.
-Cada vez que olho para ti é inevitável não me lembrar da primeira vez que nos conhecemos. Ainda te consegues lembrar?
James pensou um pouco, ainda conseguia.
-Uma pessoa repara na outra, repara ainda mais. Depois fica louco por ela.
-Jane…
-Deixa, não precisas de mo dizer. Mas penso nisto várias vezes. São os teus olhos.
-Os meus olhos?
Ela fez-lhe um afago lento e reconfortante na pálpebra.
-Os teus olhos. Tens os olhos mais meigos de todos os homens que eu conheço.
-E tu conheces muitos homens.
-Pois conheço. Muitos.
Um sorriso fechado desenhou-se-lhe nos lábios, para que os olhos não parecessem tão torturados. Era perfeitamente percetível o suplício que os habitava. James apercebeu-se, subitamente, que estavam os dois despidos, apenas enrolados na toalha, embora aquela nudez não se sentisse, o que o fez descobrir ironia em tudo aquilo. Jane afastou a mão da sua cara e ele sentiu o cheiro doce da sua pele desaparecer, evaporar-se para longe. Lentamente, como numa memória, viu-a afastar-se, em direção ao quarto, o cabelo molhado até meio das costas. Vislumbrou a figura esbelta a desaparecer na escuridão do corredor, como um delírio desfocado.
-Não percebo porque é que ainda vês os meus olhos da mesma forma. – ripostou, num timbre baixo mas que chegou até ela.
-Tu estás tão enterrado dentro disso que já não percebes nada. Mas não importa, eu espero. – respondeu, sem o ver, a voz a esbater-se pelo infinidade do ar.

James moveu-se em direção à casa de banho para procurar as roupas que tinha despido anteriormente, encontrou-as e vestiu-as. A divisão estava revestida de humidade, provocada pelo banho dela. Inevitavelmente, deu por si, a ler as palavras mais uma vez, enquanto as roupas lhe deslizavam pela pele e se agarravam ao corpo. James viu-se perpetuamente vigiado pelas palavras escritas no vidro embaciado, aquelas a que ele parecia não conseguir fugir. 

Inércia, 2014