You have to ask yourself what brought the person to this point

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

drink until you burst into fire

Custara-lhe mais do que teria considerado conciliar o acto de tolerar com o acto de enlouquecer completamente. Custava-lhe aguentar as estribeiras, era confessável, mas rapidamente aprendeu a fazê-lo e ao fim de algum tempo proporcionava-lhe uma enorme satisfação observar o quanto as situações se haviam alterado, invertido até.
Susan já não chorava, nem no caminho para a escola, nem no regresso a casa e, muito menos, no corredor que dava acesso à garagem. Ao invés disso sorria. A vida parecia agora tão meramente…suportável. “Gosto de te ver assim, olho azul, as coisas começam a correr bem, as miúdas precisam de sentir que te aguentas, que consegues lidar com as coisas. Como é que esperamos que elas lidem com os problemas da vida se não somos fortes o suficiente para lidarmos com eles? Somos o modelo a seguir, temos de transmitir uma imagem de estabilidade.” E o resto Susan deixara de ouvir. Sorrira e dissera-lhe que compreendia tudo isso, que de começo custara de facto mas que agora as coisas eram todas mais fáceis. Nunca nenhum deles soube certamente porquê, porque é que as coisas eram agora mais fáceis mas a verdade é que as garrafas de Johnny Walker continuavam a desaparecer do bar, bebidas numa insaciável cede que aniquilava os advertências todas do que era a sua vida de resigno.
Durante a noite, continuava a seguir a filha numa vigia de puro deleite e adoração pelo que esta fazia; de fascínio. E foram variadas as ocasiões em que se viu durante o dia-a-dia a observar a filha com esses olhos de mãe apaixonada, de mãe orgulhosa. “O que é?”, dizia-lhe Teri, incomodada com o olhar patético da mãe, quase inebriado por essa paixão platónica. “Nada. Já não te posso observar?”, respondia Susan, de modo a abafar o assunto. “Poder podes mas parece que estás apaixonada por mim.”, replicava Teri, “E estou. Estou muito apaixonada pela minha filha”, dizia seguramente Susan, que em tudo tencionava verbalizar exactamente o que afirmara. A única diferença é que não estava apaixonada pela filha, mas sim pelas oportunidades que esta lhe proporcionara. Pelas ínfimas possibilidades. Pela alternativa à rendição auto-comiseradora. Havia muito mais que isso. Ela precisava de muito mais que isso. E agora condição com convicção, falava com convicção, dirigia com convicção, fazia amor com convicção. Dedicava-se ao mais ínfimo detalhe da sua existência com tamanha convicção, com tamanha dedicação, com fé. Para depois durante a noite se poder entregar ao seu devaneio predilecto, para beber até as coisas parecerem inexistentes. Era a bebida analgésica. Era a promessa. O desbobinar. O sabor quente que lhe lembrava as coisas que faltavam na terra, na vida, na casa, nos traços de carácter da sua própria pessoa. O whisky era tudo. Era quente. A filha era um mundo. Uma ilusão. Um capricho. O amante era perfeito. Era mundano e perfeito. 


Conto 2: Johny Walker, História de uma Garrafa de Whisky 

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

whiskerezado aqui e ali; ali

Fomos sempre caindo um no outro, colidir no mesmo liame, na mesma conexão impossível. Porque terá sido? Qual foi a causa autêntica? Penso que nos fazia sentir mesmo alguma coisa. Chegava a fazê-lo. Chegávamos a sentir. Ainda que apenas o desespero de sentir. A imensidão do que ansiávamos ser a fulminar no peito. Questiono-me se não existiu nada mais. Mais do que esse desespero ridiculamente aflitivo de sentir. Está muito pouco lúcido. Pouco claro. Fodemos isto. Colidimos tanto nessa loucura desmesurada, na necessidade de sentir, na formação de dogmas e ideologias e teorias que no final em nada nos auxiliavam porque guiávamo-nos exclusivamente pelos nossos instintos cansados e desgastados e acabávamos por formar grandes compilações de ideias que só nos puxavam ainda mais para a sua origem e para o seu verdadeiro significado e onde é que elas seriam realmente funcionais ou úteis ou viáveis e depois deitávamo-nos com elas, dormíamos com elas, fazíamos amor com elas, fumávamos e bebíamos com elas e no fim restou tão pouco e esse tão pouco foi-se auto-aniquilando sempre no ambiente whiskerezado da nossa casa onde a história se ingressa agora nas paredes e vagueio e deambulo já sozinha, com o corpo cansado e apercebo-me, tão nostalgicamente, que realmente acabámos sem nada.


Acaba por resumir-se tudo em três ou quatro palavras. Saber distinguir as coisas aprazíveis que nos rodeiam e que nos preenchem e aquelas que se vão sentindo mas que não se demarcam ao passo que o restante vai sendo visualizado de uma barreira impenetrável de um filme sonoro e repetitivo. Estou cansada de falar e de dialogar e de me constantemente repetir. Estou cansada e saturada de tudo o resto. Decaio num espaço de pura ilusão e a sensação da queda é tão tristemente aprazível. Agarro tudo com os braços enquanto me perco. Agarro a água do solo e inspiro o vapor que se dissipa quando piso o chão frio da casa de banho e o calor se derrete com as lágrimas que escorrem e pingam o chão e dois corpos quentes unem-se pelo simples facto de se unirem. Encontro-me nesse vaivém descomedido, entre risadas e gemidos mas as pernas não prosseguem o caminho e a corda que antes era lançada no espaço infalível do ar aperta-se-me em torno da garganta e vai sendo silenciada pelos meus soluços infindáveis de pequenas chiadeiras que doem mais do que se sentem. Criou-se um espaço entre mim e essas coisas, entre mim e o mundo. O passo é tão ridiculamente curto e lento. Observo-te enquanto andas e te perdes nas divisões de uma casa, com o cigarro a queimar entre os teus dedos de homem grande e as lágrimas quentes a caírem-te pelo rosto vermelho e frio. Necessito abrandar, sossegar o que se dispara da minha boca infalivelmente mas não quero sossegar. Não quero descansar. Nem me quero articular ou findar ou descobrir. Qual é a sensação de estar dentro de mim? 




Conto 4: Ballantines, História de uma Garrafa de Whisky

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

decades

Adormeço algures durante a tarde e desperto em meados da noite, com o toque quente de duas mãos duras. Não sabendo a quem pertencem deixo que me envolvam em dois braços esguios e também eles duros e cheiro um perfume que me recorda dois corpos em simultâneo. Um odor.
            -Steve…
            -Psiuu. – diz, tapando-me os lábios com a palma dos dedos molhados. – Estou tão bêbado baby.
            -Como é que entraste aqui?
            -Ó… – ri-se – como é que entro sempre? Hum? – despe-me as cuecas e procura os meus pelos púbicos de modo a que os enrole entre os dedos como frequentemente faz – como é que entro sempre? Como é que faço sempre? Hum? Hum?
            -Pára. – digo, afastando-o do meu corpo.
            -Oh, vá lá, primeiro queres sair da minha casa sem te despedires de mim e agora recusas passar a noite comigo? O que é que se passa contigo, miúda?
            -Estou cansada, Steve.
            -Cansada não é a desculpa. Não pode ser a desculpa.
            -Porquê? Porque é que não pode?
            -Porque – diz, suspirando e parecendo incompreensivelmente cansado também – ainda não chegou a altura de te cansares. Há muito mais que isso. Tem de haver. – e durante o silêncio que se segue procuro o olhar perdido dos seus olhos cinzentos. A tonalidade. O odor. Há um negro impenetrável que reveste todo o quarto. É demasiado tarde para responder pois o seu corpo já tombado em cima do meu encontra-se envolto em soluços ferozes e desarvorados, comandados pela tristeza e pelo vazio e pela ausência. Abordada de surpresa permaneço imóvel enquanto ele se contorce em cima de mim a chorar e pressiono os braços sob a sua nuca, empurrando a sua face de encontro ao meu peito quente chorando também em silêncio. Adormecemos.
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Conto 3: Jameson Irish Whiskey, História de uma Garrafa de Whisky