You have to ask yourself what brought the person to this point

domingo, 16 de junho de 2013

Não enterrado, não à superfície, só lá dentro

Crystal fumou um cigarro e brincou com a caixa de fósforos que tinha em cima do lençol branco.
-Como é que nós parámos aqui? Não me recordo nunca de ter sido tão inusitada com um homem.
-Quando penso em ti, imagino-te terrivelmente inusitada, seja com que criatura for, não me parece que representes uma imagem comum a qualquer mente civilizada. 
-Achas que sou incivilizada?
-Peculiar…
-Peculiar é uma forma muito simpática de me chamares louca! Obrigada, senhor, você também é um tanto…peculiar.
-Tenho consciência disso.
-O que é que te atrai tanto em mim? Às vezes não compreendo os homens. Mostra-me o que é que gostas em mim.
-Para além dessa figura extraordinária?
-Incluído essa figura. Temos imagens muito distorcidas de nós ao espelho.
-Gosto da maturidade do teu pensamento, é bastante inusual para uma rapariga nova, gosto da forma como te entendes e te tens em consideração.
-Vá lá…
-És o mocho fora da floresta.
-Um macaco em lingerie vermelha.
-A mulher que vê televisão na banheira.
-Isso é muito dandy.
-És um pouco dandy.
-E feminina? Houve uma altura em que eu quis ser um rapaz, mas agora estou terrivelmente satisfeita de ser mulher. Não queria que fosse de outra forma.
-Porquê um homem?
-Porque vocês têm melhor presença. Um homem é sempre uma melhor presença.
-As mulheres são bastante mais presenciais.
-Só as mulheres a sério, essas superam os homens em qualquer sentido.
-É muito intimidante para um homem sentir que é superado por uma mulher assim.
-Somos corpos em evolução, é natural que assim seja, movem-se e evoluem mais rápido. Mas sabe-vos bem a devoção, não sabe?
-Muito egotismo.
-Que horas são?
-Muito cedo, loirinha.
-Cedo, antes da hora de comer?
-Muito antes dessa hora.
-Quando te encontro neste sítio, perco a noção do tempo e o espaço desmembra-se. É um local tão envolvente que adquire uma própria velocidade, uma própria unidade existencial. Se não fossem as ocasionais indicações de luz, eu ia achar que estávamos sempre presos no mesmo período de tempo.
-Isso é muito desconcertante.
-Não, não é. É curioso. Podia ficar aqui toda a minha vida, que não dava por isso.
-Não saberíamos do que falar durante tanto tempo.
-Não precisávamos. Tu e eu somos daquelas pessoas que se entendem melhor em silêncio. As palavras por vezes possuem o dom de estragar absolutamente tudo. Dão-nos um grande pontapé na integridade, queremos dizer tanta coisa e só saí florido, a essência fica cá toda por espremer.
-Estou muito curioso relativamente ao teu funcionamento.
-Não é muito complexo. Não me importo muito de ficar doente e tenho o terrível hábito de preferir-me em oposição a todos os outros seres humanos. E não gosto de falar demasiado.
-Mas falas demasiado.
-Eu sei. É por isso que não gosto. Ninguém reprova aquilo que nunca fez. É amargura depois do abuso. Apetece-me um cigarro.
-Apetece-me estar dentro de ti.
-Sinto-me estranha em relação a isso.
-Não enterrado, não à superfície, só lá dentro.

-Primeiro deixa-me fumar o meu cigarro e pensar sobre isto.

O Pijama da Gata, 2013