You have to ask yourself what brought the person to this point

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

vinte dedinhos

Atravessa-lhe o pensamento com rapidez a sequência de ocorrências que tomaram lugar na noite anterior e incomodado pela presença realista que o taxista lhe tem na mente, Joan volta-se de costas para Sarah e esconde as mãos debaixo da almofada, de olhar fixo no chão, paralisado pela revivência de sensações que precisa recordar, na amnésia alcoólica do seu delírio passado. Os olhos inebriantes do homem bloqueiam-no num momento irreal de avaliação em que o peso do seu erro para atingir o auge, Sarah não existe neste sonho e não faz sentido que ela se exteriorize, Crystal está apenas presente em forma idealista: um cheiro, um sabor, um toque, uma ideia abstracta de sedução. Joan cerra os olhos e força-os a cerrarem-se mais nesta incapacidade em observar. O coração acelera-se-lhe tremendamente no peito e uma distância irreal afastam-no da realidade perceptível. Escuta-se exclusivamente a si mesmo no centro daquele desenfreado dessincronizado e pensa em como uma coisa tão mundana quanto uma mulher bonita lhe veio destruir a paz. Os olhos do taxista são de tal forma maléficos que voltam para o penumbrar e, surgindo no canto do quarto, espreitam-no em afirmada presença, os olhos a que nada escapa, “deixe-me olhar melhor para si, homem”, ouve-os dizer.
O suor desliza-lhe indiferente pelo peito, gotícula abundante atrás de gotícula abundante, o som de um relógio escuta-se longínquo na cozinha, aquela sempre presença do tempo que passa e que o aterroriza, os dois olhos que percorrem as paredes ínfimas do quarto, são tão flexíveis quanto duas pernas porque se fazem entender em diversos pontos distintos.
-O senhor precisa de descansar, não lhe faz bem apaixonar-se por uma rapariga dessas que se alimenta da sua alma. – ouve o homem dizer, na sua voz mais confessional, paternalista e trocista, o homem não quer verdadeiramente saber dele, só está ali presente ao canto do quarto para o assombrar, quer rir-se dele, o artista que perde o controle do seu rumo.

-O senhor vá dormir e tente compreendê-la! Faça o que fizer já é muito tarde, a criatura já se lhe apoderou do corpo. Agora o máximo que pode fazer é dar-lhe um dedinho, animais como ela já se contentam com um dedinho…mas tenha cuidado! Só tem vinte dedinhos e vinte vezes acontecem muito rápido, é só duplicar as dez, quadruplicar as cinco, você sabe do que é que eu falo….


O pijama da Gata

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

sem hostilidades geográficas

Caminham delicadamente, já noutro local mais sóbrio e diáfano que o anterior onde a recordação se prende no devorar de um fruto vermelho que lhe salpica a boca de um sabor melífluo e suprimido, os pés de uma felina incessável que se agita através de uma deliberação irreal à rendição e ao aprazimento.
A rua húmida e cálida denota um cheiro a alcatrão molhado que sensualmente vai devorando os indivíduos que nela se inserem como pequenas peças num tabuleiro onde o jogo é ilimitado.
Spike Hill avista-se a vários passos que os distanciam  mas que são rapidamente encurtados por passadas seguras e precisas, num girar de ancas muito ligeiro e sugestivo. Empurra com a mão pequena a porta de madeira alta e penetra um espaço frenético de batuques e melodias que se frisam no ar rasgado do estabelecimento em frequências altas e disformes de jazz e blues quase seriamente experimentais. O ambiente é pesado e intenso. O casaco comprido que lhe reveste as curvas delineadas é puxado por um braço vigoroso e forte de um homem de barba já branca que lhe segreda ao ouvido num sussurro lânguido:
-Ivy… - mas ela abre a boca num boleado perfeito de enlevo e segue indistinta até ao balcão, despersonalizando-se enquanto caminha num trajecto seguida de néones vermelhos que facultam o panorama underground de Spike Hill. As pernas entrelaçam-se num sentar certo e quase autónomo e o veludo macio das cuecas sente-se no entre pernas que vinca dois músculos firmes suspensos pela pressão desmedida.
O olhar do homem é insistente e atravessa o compartimento ainda que as costas voluptuosas o ignorem, mas comunicam numa ignorância tão quimérica e extraordinariamente rude.
-Ivy… - corta novamente e ela volta-se, com dois cubos de gelo frios entre a língua, desbotados pelo vermelho berrante dos lábios que se vai aniquilando. Não que não o sinta porque os corpos cansados dos dois roçam-se sob as luzes encarnadas e sobre o fumo embaçado daquele edifício complicado. Arqueia as costas perigosamente e ele aproxima as mãos só ate sentir o calor que emanam tão impetuosamente e que se dissipa num odor denso mas deliciosamente doce.
-Ivy… - ressoa novamente e ambos engolem os quarenta e oito graus de álcool cujo efeito veloz é patente logo após esse primeiro gole de muitos outros já tomados. A voz ondula e reproduz-se no ar, anexando-se às frequências improvisadas do sax e da bateria e do trompete mas é o som infalível do piano que se distingue. Já não é o homem que a nomeia, já não é a música que toca, já nem é, sequer, o whisky que se bebe. Cruzam-se várias parcelas essenciais mas só se distingue uma…Ivy.


Um exercício em Williamsburg.

domingo, 3 de novembro de 2013

os olhos de um génio

 Crystal entende-se no reflexo do espelho e compreende quem nem todas as coisas são assim tão complicadas, que a composição perfeita daquele cara é uma sorte do acaso, que o homem que a observa da cama está prestes a sair e que é só ele que lhe lê totalmente o espírito. Não se sente agredida por nenhum destes factores, não se sente desesperada pela adversidade da situação, ao invés, fita-se seriamente frente ao espelho e pensa que a singularidade da vida possui um curso muito próprio, não deve remar contra ele mas sim aprender a aliar-se. A chave para a satisfação está sempre lá e ela vai aprender a lê-la, as pessoas são todas felizes e só precisam de o compreender.
                A noite começa a pôr-se lentamente e é geralmente nesta altura que Crystal mais sente a solidão só que hoje a sua pessoa não a assusta. Calmamente começa por aplicar um creme, a base da maquilhagem, para logo depois passar para a base com cor que lhe fornece uma matiz perfeita. Aplica duas gotas de perfume no pescoço e nos pulsos e inspira o odor doce. Na cama, Joan sente a fragrância chegar-lhe como uma onda natural de ar. Basta-lhe cheirá-la, prová-la, tocar-lhe, vê-la ou ouvi-la para que imediatamente mergulhe na imensidão do seu ser. Ela move-se na cadeira e murmura qualquer coisa ele olha-a e chama-a para a cama:
-Vem cá.
Mas ela não se levanta e não lhe responde. Pega no lápis dos olhos e desenha duas linhas negras nos olhos com precisão, tornando-os compridos e exóticos, o preto que dá profundidade ao cinzento. Aplica o rímel nas pestanas que, já grandes por natureza, ficam mais espessas e completam os olhos com um magnetismo ainda mais intenso. Passa para a boca, delinea os lábios com um lápis vermelho, passa neles um batom da mesma tonalidade, voluptuosos e cheios, a boca da ruína.
-Tens os lábios de um animal perigoso.
-Tens as mãos de um doido. – diz-lhe ela, fitando-o.
-Como é que os doidos têm as mãos?
-Como as tuas. Agarram tudo com as mãos cheias, dedos rijos e duros, bonitos. Mas deixam cair sempre qualquer coisa. Às vezes deixam cair tudo.
-E as tuas mãos?
-Deixa estar as minhas mãos. Elas só tocam nas coisas, raramente as agarram.
-Não queres vir até aqui?
-Vou sentir a falta de ouvir isso.
-Vem cá.
-Pede-me só mais uma vez.
-Vem cá.
-Outra.
-Vem cá.
Crystal levanta-se e movimenta-se até à cama, a cara excelentemente composta. Joan prende-a nos braços musculados e beija-lhe a boca repetidamente para se lembrar do cheiro e do sabor dela. A porta que dá para o corredor está aberta e consegue compreender-se o corredor escuro onde um homem sobe as escadas e entra na porta correspondente ao outro apartamento. Solta-se do seu colo, abre as persianas e uma súbita e forte luz entra e fere-lhe os olhos mas ao fim de algum tempo torna-se agradável. Segue até à porta e fecha-a.
-Eles ainda querem ver. – diz Joan. – Está quase no fim.
Crystal suspira e abre a porta. Olha em redor, vê os espectadores e emociona-se por eles, depois por ela e finalmente por Sally. Acaba sempre por se considerar uma boa escolástica.
-E agora? -Joan volta o olhar para ela da cama.
-Agora vou procurar um cigarro, acendê-lo e fumá-lo.
-Como sempre.
-Vou chamar-te e vais suspirar. Vais aproximar-te e deitar-te nos meus braços.
-A teu lado.
-Vais deitar-te a meu lado. Já te disse que ficas particularmente elegante com os lábios tão vermelhos?
-Depois vou agarrar-me ao teu corpo e beijar-te a mão.
-Vou estar a fumar.
-Beijo a outra.
-Podes beijar a outra. Não te esqueças da minha mão.
-Não. São dedos muito particulares.
-Já sei. Mãos de doido.
-Vou tirar um cigarro e vou fumá-lo também. Brevemente será de noite.
-Vamos fazer amor outra vez, vou devorar-te o corpo. Depois vais levantar-te e ver a cidade. Vais pensar no nosso quarto.
-Vou comprá-lo.
-Vais comprar o nosso quarto de motel?
-Vou.
-Vais ver a cidade e vais fumar um cigarro sobre a luz verde do quarto. Vai ser uma noite igual às outras. Vais pensar na mesma tristeza.
-Em como a cidade é diferente enquanto todos dormem.
-Vou levantar-me e vestir-me, vou estar demasiado absorvido em ti para que me aproxime.
-Nós não sabemos dizer adeus.
-Não te vou dizer adeus.
-Vais sair?
-Vou sair, apanhar um táxi e vou para casa. Talvez não. Vou a pé. Quero perder-me nas ruas.
-A cidade é muito diferente quando estão todos a dormir.
-És um ser muito particular.
-Mas não tenho essas mãos.
-Não tens estas mãos.
-Eu vou acabar o meu cigarro e não te vou ver partir, a cidade vai ter-me totalmente naquele instante. Não vou ser tua, vou ser da cidade. Depois vou levantar-me e vou sentar-me no toucador.
-Vais por música?
-Não.
-Vais sentir a minha falta?
           -Ainda não. – Crystal faz uma pausa e contempla-o, tem os olhos mais bonitos, são os olhos de um génio.


O pijama da Gata, 2013