Crystal entende-se no reflexo do
espelho e compreende quem nem todas as coisas são assim tão complicadas, que a
composição perfeita daquele cara é uma sorte do acaso, que o homem que a
observa da cama está prestes a sair e que é só ele que lhe lê totalmente o
espírito. Não se sente agredida por nenhum destes factores, não se sente
desesperada pela adversidade da situação, ao invés, fita-se seriamente frente
ao espelho e pensa que a singularidade da vida possui um curso muito próprio,
não deve remar contra ele mas sim aprender a aliar-se. A chave para a
satisfação está sempre lá e ela vai aprender a lê-la, as pessoas são todas
felizes e só precisam de o compreender.
A
noite começa a pôr-se lentamente e é geralmente nesta altura que Crystal mais
sente a solidão só que hoje a sua pessoa não a assusta. Calmamente começa por
aplicar um creme, a base da maquilhagem, para logo depois passar para a base
com cor que lhe fornece uma matiz perfeita. Aplica duas gotas de perfume no
pescoço e nos pulsos e inspira o odor doce. Na cama, Joan sente a fragrância chegar-lhe como uma onda natural de ar. Basta-lhe cheirá-la, prová-la,
tocar-lhe, vê-la ou ouvi-la para que imediatamente mergulhe na imensidão do seu
ser. Ela move-se na cadeira e murmura qualquer coisa ele olha-a e chama-a para
a cama:
-Vem cá.
Mas ela não se levanta
e não lhe responde. Pega no lápis dos olhos e desenha duas linhas negras nos
olhos com precisão, tornando-os compridos e exóticos, o preto que dá
profundidade ao cinzento. Aplica o rímel nas pestanas que, já grandes por
natureza, ficam mais espessas e completam os olhos com um magnetismo ainda mais
intenso. Passa para a boca, delinea os lábios com um lápis vermelho, passa
neles um batom da mesma tonalidade, voluptuosos e cheios, a boca da ruína.
-Tens os lábios de um
animal perigoso.
-Tens as mãos de um
doido. – diz-lhe ela, fitando-o.
-Como é que os doidos
têm as mãos?
-Como as tuas. Agarram
tudo com as mãos cheias, dedos rijos e duros, bonitos. Mas deixam cair sempre
qualquer coisa. Às vezes deixam cair tudo.
-E as tuas mãos?
-Deixa estar as minhas
mãos. Elas só tocam nas coisas, raramente as agarram.
-Não queres vir até
aqui?
-Vou sentir a falta de
ouvir isso.
-Vem cá.
-Pede-me só mais uma
vez.
-Vem cá.
-Outra.
-Vem cá.
Crystal levanta-se e movimenta-se
até à cama, a cara excelentemente composta. Joan prende-a nos braços musculados
e beija-lhe a boca repetidamente para se lembrar do cheiro e do sabor dela. A
porta que dá para o corredor está aberta e consegue compreender-se o corredor
escuro onde um homem sobe as escadas e entra na porta correspondente ao outro
apartamento. Solta-se do seu colo, abre as persianas e uma súbita e forte luz
entra e fere-lhe os olhos mas ao fim de algum tempo torna-se agradável. Segue
até à porta e fecha-a.
-Eles ainda querem ver.
– diz Joan. – Está quase no fim.
Crystal suspira e abre
a porta. Olha em redor, vê os espectadores e emociona-se por eles, depois por
ela e finalmente por Sally. Acaba sempre por se considerar uma boa escolástica.
-E agora? -Joan volta o
olhar para ela da cama.
-Agora vou procurar um
cigarro, acendê-lo e fumá-lo.
-Como sempre.
-Vou chamar-te e vais
suspirar. Vais aproximar-te e deitar-te nos meus braços.
-A teu lado.
-Vais deitar-te a meu
lado. Já te disse que ficas particularmente elegante com os lábios tão
vermelhos?
-Depois vou agarrar-me
ao teu corpo e beijar-te a mão.
-Vou estar a fumar.
-Beijo a outra.
-Podes beijar a outra.
Não te esqueças da minha mão.
-Não. São dedos muito
particulares.
-Já sei. Mãos de doido.
-Vou tirar um cigarro e
vou fumá-lo também. Brevemente será de noite.
-Vamos fazer amor outra
vez, vou devorar-te o corpo. Depois vais levantar-te e ver a cidade. Vais
pensar no nosso quarto.
-Vou comprá-lo.
-Vais comprar o nosso
quarto de motel?
-Vou.
-Vais ver a cidade e vais
fumar um cigarro sobre a luz verde do quarto. Vai ser uma noite igual às
outras. Vais pensar na mesma tristeza.
-Em como a cidade é
diferente enquanto todos dormem.
-Vou levantar-me e
vestir-me, vou estar demasiado absorvido em ti para que me aproxime.
-Nós não sabemos dizer
adeus.
-Não te vou dizer
adeus.
-Vais sair?
-Vou sair, apanhar um
táxi e vou para casa. Talvez não. Vou a pé. Quero perder-me nas ruas.
-A cidade é muito
diferente quando estão todos a dormir.
-És um ser muito
particular.
-Mas não tenho essas
mãos.
-Não tens estas mãos.
-Eu vou acabar o meu
cigarro e não te vou ver partir, a cidade vai ter-me totalmente naquele
instante. Não vou ser tua, vou ser da cidade. Depois vou levantar-me e vou
sentar-me no toucador.
-Vais por música?
-Não.
-Vais sentir a minha
falta?
-Ainda
não. – Crystal faz uma pausa e contempla-o, tem os olhos mais bonitos, são os
olhos de um génio.O pijama da Gata, 2013
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