You have to ask yourself what brought the person to this point

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Se me aqueceres um pé, eu dou-te metade da minha metade.

-O quê? – Jane escondeu a cara no cabelo e mordeu o lábio, tinha uma volumosa massa capilar e olhos cor de avelã. – o que é que foi?
-Tens de te tapar mais, senão distrais-me. – disse James.
Ela olhou para o corpo e viu a forma redonda do mamilo que espreitava pela linha do lençol e realçava na brancura do corpo.
-Isto? Estás a ser muito mesquinho.
-São os melhores seios do mundo.
-Oh… – gemeu ela e deu um puxão ao lençol até este lhe tapar a cana do nariz. Debaixo do algodão macio, sentiu as bochechas ruborizarem e o calor da respiração aconchegá-la.
A chuva caía lá fora com uma violência feroz, cada gotícula embatia na superfície das moradias para, logo a seguir, deslizar e se desfazer no chão. James fechou os olhos, moldou gentilmente o corpo nu à almofada e o calor do contacto começou a envolvê-lo numa sonolência breve. A voz de Jane ecoou pela divisão como uma música:
-Não me vais contar?
-Quando parar de chover.
-Não vai parar, disseram na rádio que ia chover o dia todo.
James suspirou e coçou a cabeça. Fora da cama, sentia-se um frio cortante.
-Não me queres contar? – inquiriu ela.
-Não, porque depois vais ter de guardar esta informação.
-Que mal tem isso?
-Vai-te consumir como me consome a mim.
-Olha, segreda-me ao ouvido se te for mais fácil.
James abriu os olhos e pensou durante um momento. Agilmente, virou-se e aproximou-se dela. O cabelo caía-lhe sobre a almofada, com uma cor luzidia e a pele era de um branco uniforme, imaculado, praticamente sem sinais a deformá-lo. Embora não lhe visse os olhos, imaginava-os grandes, transfigurados pela vermelhidão do sono, a cor da íris mais evidente, meio rasgados e doces. Sentiu a necessidade de lhe beijar as pálpebras mas, ao invés, enterrou o queixo no pescoço dela e inspirou profundamente, sussurrando de forma suave e com voz rouca:
-Ele só me contou metade.
Jane retorquiu, como quem dizia segredos:
-Metade serve. Às vezes só é preciso saber metade.
-Posso contar-te metade de metade.
-Metade de metade não chega. Tenho de saber a metade que tu sabes.
James olhou para o ombro dela e tentou adivinhar a expressão que lhe desenhava a cara. Imaginava, com uma certa curiosidade, o calor que se lhe formava nas pernas e apertava as suas, uma contra a outra, para que a sensação fosse igual.
-Não me vais dar a tua metade?
-Olha, eu dou-ta se me aqueceres um pé.
-Se te aquecer um pé? – inquiriu ela.
-Se me aqueceres um pé, eu dou-te metade da minha metade.
-Mas eu não quero metade da tua metade.
-E se me aqueceres o outro pé, dou-te a outra metade.
Num movimento brusco, ela voltou-se para ele, e os seus narizes roçaram suavemente. Mais do que sonolentos, os olhos pareciam aborrecidos, como se possuíssem vida própria, dois globos oculares cheios de personalidade. Fitava-o de modo intimidante, com as sardas no nariz a adoçarem-lhe a expressão. James observou-a demoradamente e, antes que ela começasse a falar, conseguiu contar-lhe quinze sardas.
-Se eu te aquecer todo, contas-me a outra metade que não me queres contar?
James pensou durante um momento na resposta.
-Conto.
Jane aproximou-se dele e, delicadamente como uma criança, elevou as pernas debaixo dos lençóis e colocou-as sobre as dele. Depois esfregou-as durante uns momentos até a pele atingir uma temperatura agradável. Entrelaçou os pés nos dele e aproximou-se mais da sua cara.
-Agora conta. – Sussurrou, com o hálito quente a evaporar-se no ar frio do quarto.
-Quero dar-te um beijo rápido.
-Não há crueza aqui nesta cama. Estou a aquecer-te os pés e pronto.
-“É com o último que tens de te preocupar”.
-Com o último? – perguntou ela, surpreendida.
-Foi o que ele disse e apontou o dedo para um dos quatro relógios na parede.
-Havia quatro relógios?
-Todos alinhados e com fusos horários diferentes.
Ela voltou o olhar para o peito dele e, cabisbaixa, disse:
-É sempre sobre o raio do tempo, não é?
James olhou-a e sentiu a chuva a cair com perseverança. A certa altura, o impacto era tanto que o vidro da janela parecia quebrar-se.
-Eu disse-te. Agora vais ficar com isto em ti.
Jane levantou os olhos para ele e observou-o com tristeza.
-Tenho medo do tempo.
James abriu a boca e colou os lábios em volta do nariz dela.
-Não precisas de ter medo, é muito simples, o tempo ou te engole ou te deixa de fora.
Jane expirou com força e ele tirou a boca. Na ponta do nariz, reluziu um pequeno torrão de saliva.
-Porquê o último relógio?
James olhou para a janela onde chovia, depois novamente para ela. Encostou a cabeça ao cabelo dela e inspirou.
-Não sei. Não percebi aquele tempo, não percebi aquele relógio.
-Assustou-te?
A boca dela era pequenina e formava um círculo fechado. James riu-se e aproximou os lábios dos dela, sentiu-lhe o calor da sua boca e uma certa humidade na respiração.
-O tempo não me assusta. Mas aquele homem assusta-me.
-Porquê?
-Tem as mãos compridas. Parece que temos as mesmas mãos.

Ela levou as mãos até junto da cabeça e observou os dedos atentamente. Uma lágrima gorda chegou-lhe ao canto do olho e rolou pela face.
-O que foi? – perguntou James.
Jane pensou durante um momento na resposta, enquanto escutava a violência da chuva lá fora. Se fosse outro dia qualquer, arrastá-lo-ia da cama, mas aquele era um dia muito específico. Tinha-se esquecido que existia uma hora qualquer por onde se guiava e o calor da cama envolvia-a num conforto inigualável. Enquanto a lágrima escorregava, pensou que havia já muito tempo que não chorava e, perturbada, deixou escorrer outra. Olhou para James e ele olhou para ela. Viu-lhe a lágrima gorda na ponta do queixo, mas não se pronunciou.
-Agora é a minha vez. – gemeu ela, baixinho e voltou-se de costas. – Aquece-me os dois pés e eu dou-te a parte inteira.
Delicadamente, descruzaram as pernas e James envolveu-lhe os pés com os seus, maiores em toda a sua proporção, enquanto ela fechou os olhos e deixou escorrer mais duas lágrimas gordas.

Inércia, 2014

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