You have to ask yourself what brought the person to this point

domingo, 9 de fevereiro de 2014

sono, nos olhos.

Jane olhou para as pernas esticadas no sofá e James aproveitou para dar a volta e sentar-se ao lado dela. Segurou o tabuleiro no colo e estendeu-lho, ela encostou o nariz à bandeja e observou os pedaços com demorada atenção, contorcendo a cabeça para a linha do tabuleiro.
-Não sei por que pedaço devo começar.
-Vais comê-los todos, por isso creio que podes começar por aquele que, no teu instinto, te agradar mais.
-A ordem com que levo cada pedaço à boca é muito importante. Imagina só que, por alguma razão, não os degusto de forma apropriada?
-A noite vai correr-nos mal?
-A noite pode correr incrivelmente mal. Não brinques com sequências.
-Eu não brinco com nada. Estou a cozinhar-te o jantar.
-E agora o cigarro?
-Que tem o cigarro?
-Qual é que deve ser o primeiro?
James olhou para os dez cigarros alinhados em volta das chávenas de café e pensou que, fundamentalmente, ele também não sabia.
-Como é que eu tenho a certeza se estou certo?
-Ora. Essa é a minha questão.
-Ouve… - disse James – eu acho que devíamos tirar um cigarro e pô-lo na boca, sem complexidade.
Jane fechou os olhos e tirou um cigarro. Depois voltou lá com a mão e apanhou um pedaço de queijo que enfiou rapidamente na boca. Ele observou-a a saborear o torrão de queijo de olhos fechados e comoveu-se, estava a juntar-se tudo num cenário lógico e agradável, com a música a corroborar.
-Se aumentares o volume um nível, acho que vou ter um orgasmo.
James riu-se, olhou para ela e viu-lhe as pálpebras cerradas, inundadas de prazer e estremeceu.
-Não estou acostumado a que as mulheres me sintam assim, sem sequer lhes tocar.
-O teu espírito invade-me muitas vezes, não é nenhuma surpresa. Mas hoje, o mérito é do queijo.
-Não sei o que é que estás a sentir, mas parece muito bom.
Levou a mão ao tabuleiro, fechou os olhos e, aleatoriamente, tirou um pedaço de queijo que colocou rapidamente dentro da boca. Enquanto deixava que o amante alcançasse o mesmo estádio que ela, Jane aproximou o dedo da mão dele e acariciou-o lentamente.
-O que é que estás a fazer? – perguntou ele, alarmado mas relaxado.
-Ia contar, apetece-me fazer matemática.
Ele abriu um olho e voltou-o para ela.
-No escuro não se conta. Só se for de cabeça.
-De cabeça são quinze. Mas a minha memória é desconfiável.
-Sempre foste assim, só te lembras do que queres.
-Lembro-me de tudo. Lembro-me sempre de tudo. Tão bem que sei que tens dezassete sinais.
-E mais o quê?
-E que agora a seguir vais dar-me whisky.
Ele encostou a cabeça ao ombro dela.
-Se te lembras de tudo isto, não vai ter piada.
-Presumo que tenhas inserido um fator surpresa.
-Porque presumes isso?
-Porque já sabes que eu me lembro sempre. E que presumo sempre.
-Um desses cigarros tem uma aliança.
Jane afastou-se dele e olhou-o com espanto.
-Nem a surpreender-te sou bom.
Ela riu-se.
-Agora conseguiste. Vai buscar a garrafa. Já tenho fome para o doce.
Ele levantou-se e voltou com uma garrafa de whisky e dois copos.
-Quando encontras uma pessoa sentada sozinha a uma mesa, a beber a tua bebida favorita é porque é para casar.
Ela olhou para ele e um sorriso discreto formou-se-lhe nos lábios.
-Foi isso que pensaste naquela noite?
-Não. – Fez uma pausa e pensou durante um momento - Foi um bocadinho. Primeiro pensei que estava feito.
-Depois pensaste em casamento.
-Depois fiquei com sono, mas ainda te levei para casa.
-Sono? Não te li sono nos olhos.
-Tenho olhos discretos.
-Isso é que é uma verdadeira mentira. Vi neles os primeiros raios de tristeza. Antes, olhavas para mim com timidez.
-Intimidado?
-Não. Com timidez. Uma timidez dócil, quase como se te visse o lábio de baixo a tremer. Como se me estivesses a contemplar, mas com tristeza.
-Porquê tristeza?
-Não sei, se calhar achavas que eu me ia embora.
James tentou lembrar-se, mas subitamente aquele ano pareceu-lhe muito longe.
-Acho que o que acontece é que eu nunca soube olhar para uma mulher.
-Eu acho que era a melhor forma de me olhares. Via-te uma certa nostalgia nos olhos. Era como se fosse observada pela tristeza. As mulheres percebem a tristeza, eu percebia-te os olhos, percebia muito bem o que vias em mim.
-Não te assustava achares que eu sabia que te ias embora?
-O medo é o melhor impulso no início de um relacionamento. E não me fui embora.
-Mas os meus olhos continuam tristes.
-Agora olhas para mim com medo de que me vá embora. Não é a certeza de que vou, é o receio de que vá.
James olhou para ela e depois para as mãos. Era engraçado que, ultimamente, se lembrassem desse tempo com tanta frequência. Pensou que isso poderia significar que estavam a chegar a qualquer sítio. Invocar o início no fim.
-Mas hoje não, James, hoje eles estão diferentes.
-Estão antigos?
-Estão a lembrar-se. Ficas bonito quando te lembras das coisas.
-Eu já não me lembro de quase nada. – disse e voltou a encostar-se.
-As memórias não são o que parecem.
James afastou-se dela e olhou-a com especulação.
-Que queres tu dizer com isso?
-Não sei. Pensei nisso e pareceu-me bem. Acho que é como o tempo. Tens medo das memórias, assim como eu tenho medo do tempo.
-Porque são contáveis?
-Porque te restringem. Se não existisse passado, não estavas chateado com a tua situação no presente porque não tinhas termo de comparação.
Ele sentiu a energia dissipar-se-lhe pelas pontas dos cabelos.
-Mas, James, lembrares-te como hoje é bom. Diz muitas coisas sobre ti.- Ele olhou para ela através do ombro ossudo, viu brilharem-lhe os olhos no meio da luz intimista. – Todo o ritual desta noite diz muito sobre ti ao longo dos anos. Não chores porque já não te lembras, porque intimamente lembras-te. Recordar não é sentir exactamente o mesmo.

-Vais deixar-me cansado para continuar. 


Inércia, 2014 

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