Jane olhou para as
pernas esticadas no sofá e James aproveitou para dar a volta e sentar-se ao
lado dela. Segurou o tabuleiro no colo e estendeu-lho, ela encostou o nariz à
bandeja e observou os pedaços com demorada atenção, contorcendo a cabeça para a
linha do tabuleiro.
-Não sei por que
pedaço devo começar.
-Vais comê-los
todos, por isso creio que podes começar por aquele que, no teu instinto, te
agradar mais.
-A ordem com que
levo cada pedaço à boca é muito importante. Imagina só que, por alguma razão,
não os degusto de forma apropriada?
-A noite vai
correr-nos mal?
-A noite pode
correr incrivelmente mal. Não brinques com sequências.
-Eu não brinco com
nada. Estou a cozinhar-te o jantar.
-E agora o
cigarro?
-Que tem o
cigarro?
-Qual é que deve
ser o primeiro?
James olhou para
os dez cigarros alinhados em volta das chávenas de café e pensou que,
fundamentalmente, ele também não sabia.
-Como é que eu
tenho a certeza se estou certo?
-Ora. Essa é a
minha questão.
-Ouve… - disse
James – eu acho que devíamos tirar um cigarro e pô-lo na boca, sem
complexidade.
Jane fechou os
olhos e tirou um cigarro. Depois voltou lá com a mão e apanhou um pedaço de
queijo que enfiou rapidamente na boca. Ele observou-a a saborear o torrão de
queijo de olhos fechados e comoveu-se, estava a juntar-se tudo num cenário
lógico e agradável, com a música a corroborar.
-Se aumentares o
volume um nível, acho que vou ter um orgasmo.
James riu-se,
olhou para ela e viu-lhe as pálpebras cerradas, inundadas de prazer e
estremeceu.
-Não estou
acostumado a que as mulheres me sintam assim, sem sequer lhes tocar.
-O teu espírito
invade-me muitas vezes, não é nenhuma surpresa. Mas hoje, o mérito é do queijo.
-Não sei o que é
que estás a sentir, mas parece muito bom.
Levou a mão ao
tabuleiro, fechou os olhos e, aleatoriamente, tirou um pedaço de queijo que
colocou rapidamente dentro da boca. Enquanto deixava que o amante alcançasse o mesmo
estádio que ela, Jane aproximou o dedo da mão dele e acariciou-o lentamente.
-O que é que estás
a fazer? – perguntou ele, alarmado mas relaxado.
-Ia contar,
apetece-me fazer matemática.
Ele abriu um olho
e voltou-o para ela.
-No escuro não se
conta. Só se for de cabeça.
-De cabeça são
quinze. Mas a minha memória é desconfiável.
-Sempre foste
assim, só te lembras do que queres.
-Lembro-me de
tudo. Lembro-me sempre de tudo. Tão bem que sei que tens dezassete sinais.
-E mais o quê?
-E que agora a
seguir vais dar-me whisky.
Ele encostou a cabeça
ao ombro dela.
-Se te lembras de
tudo isto, não vai ter piada.
-Presumo que
tenhas inserido um fator surpresa.
-Porque presumes
isso?
-Porque já sabes
que eu me lembro sempre. E que presumo sempre.
-Um desses
cigarros tem uma aliança.
Jane afastou-se dele
e olhou-o com espanto.
-Nem a surpreender-te
sou bom.
Ela riu-se.
-Agora
conseguiste. Vai buscar a garrafa. Já tenho fome para o doce.
Ele levantou-se e
voltou com uma garrafa de whisky e dois copos.
-Quando encontras
uma pessoa sentada sozinha a uma mesa, a beber a tua bebida favorita é porque é
para casar.
Ela olhou para ele
e um sorriso discreto formou-se-lhe nos lábios.
-Foi isso que
pensaste naquela noite?
-Não. – Fez uma
pausa e pensou durante um momento - Foi um bocadinho. Primeiro pensei que estava
feito.
-Depois pensaste
em casamento.
-Depois fiquei com
sono, mas ainda te levei para casa.
-Sono? Não te li
sono nos olhos.
-Tenho olhos
discretos.
-Isso é que é uma
verdadeira mentira. Vi neles os primeiros raios de tristeza. Antes, olhavas
para mim com timidez.
-Intimidado?
-Não. Com timidez.
Uma timidez dócil, quase como se te visse o lábio de baixo a tremer. Como se me
estivesses a contemplar, mas com tristeza.
-Porquê tristeza?
-Não sei, se
calhar achavas que eu me ia embora.
James tentou lembrar-se,
mas subitamente aquele ano pareceu-lhe muito longe.
-Acho que o que
acontece é que eu nunca soube olhar para uma mulher.
-Eu acho que era a
melhor forma de me olhares. Via-te uma certa nostalgia nos olhos. Era como se
fosse observada pela tristeza. As mulheres percebem a tristeza, eu percebia-te
os olhos, percebia muito bem o que vias em mim.
-Não te assustava
achares que eu sabia que te ias embora?
-O medo é o melhor
impulso no início de um relacionamento. E não me fui embora.
-Mas os meus olhos
continuam tristes.
-Agora olhas para
mim com medo de que me vá embora. Não é a certeza de que vou, é o receio de que
vá.
James olhou para
ela e depois para as mãos. Era engraçado que, ultimamente, se lembrassem desse
tempo com tanta frequência. Pensou que isso poderia significar que estavam a
chegar a qualquer sítio. Invocar o início no fim.
-Mas hoje não,
James, hoje eles estão diferentes.
-Estão antigos?
-Estão a lembrar-se.
Ficas bonito quando te lembras das coisas.
-Eu já não me
lembro de quase nada. – disse e voltou a encostar-se.
-As memórias não
são o que parecem.
James afastou-se
dela e olhou-a com especulação.
-Que queres tu
dizer com isso?
-Não sei. Pensei
nisso e pareceu-me bem. Acho que é como o tempo. Tens medo das memórias, assim
como eu tenho medo do tempo.
-Porque são
contáveis?
-Porque te
restringem. Se não existisse passado, não estavas chateado com a tua situação
no presente porque não tinhas termo de comparação.
Ele sentiu a
energia dissipar-se-lhe pelas pontas dos cabelos.
-Mas, James,
lembrares-te como hoje é bom. Diz muitas coisas sobre ti.- Ele olhou para ela
através do ombro ossudo, viu brilharem-lhe os olhos no meio da luz intimista. –
Todo o ritual desta noite diz muito sobre ti ao longo dos anos. Não chores
porque já não te lembras, porque intimamente lembras-te. Recordar não é sentir exactamente
o mesmo.
-Vais deixar-me
cansado para continuar.
Inércia, 2014
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