You have to ask yourself what brought the person to this point

domingo, 30 de março de 2014

de noite, nos medos, com os minutos.

um homem sentou-se a seu lado e dirigiu-se ao empregado:
-Quero o mesmo que ele está a beber.
Quando ouviu a voz, lembrou-se de alguém, mas a cara não se lhe assemelhava, voltou a cabeça na sua direção e viu um homem jovem de mãos grandes e rosto esplêndido. Lembrou-se que na última vez que o tinha visto, ele tocava piano com uma elegância extrema.
-Homem que tens as minhas mãos…. - contemplou-o na luz quente do bar e achou-lhe a voz muito arrastada e tentadora. - … tens sonhado?
-Sonhado? – Respirou James, vexado.
-De noite, nos teus medos.
James baixou a cabeça e aproximou-a da superfície vermelha do balcão, sentiu um peso terrível abatê-lo.
-É incrível – suspirou – mas não me recordo.
-É uma pena… – disse Daniel – …mas hoje vais sonhar.
-Porque é que estás aqui?
-Porque a vida é formada de ocasionalidades.
James olhou para ele e sentiu qualquer coisa de anormal, uma aura praticamente inalcançável. Viu três reproduções do mesmo homem sentadas a seu lado.
-Porque é que estás a usar as minhas mãos?
Daniel olhou para os dedos compridos e inspeccionou-os dos dois lados, depois voltou o olhar para James e semicerrou os olhos.
-Porque as coisas nem sempre parecem o que são.
-Sr., é mais um whisky. – pediu, James.
-Dê-me outro igual. – acrescentou, Daniel.
O barman serviu os dois homens e encostou-se na pose anterior, a observá-los friamente.
-Quando é que vais voltar ao trabalho? – inquiriu, o rapaz.
-Não sei…não sei o tempo de nada.
-O tempo… - Daniel olhou para a parede do estabelecimento onde surgiram quatro relógios idênticos, mas com diferentes horas marcadas. James apoiou a cabeça nos antebraços porque a sentia grande e a latejar, mas o seu olhar não se despegava dos oito ponteiros que giravam nos quatro relógios. – Lá, fora da vidraça, não existe tempo.
James olhou para a porta verde por onde ambos tinham entrado, mas não conseguiu compreender a que é que ele se referia.
-É do tempo que me estás a falar?
-É do teu trabalho. Lá fora, já não existe nada. Vais perceber logo à noite quando sonhares.
James olhou-o muito fixamente e achou que era o homem mais espantosamente bonito que ele alguma vez vira.
-Estou a ver-te perdido num sítio qualquer, a usar as minhas mãos.
-Está na hora de eu me ir embora – Declarou Daniel, enquanto se levantava e largava duas ou três notas em cima do balcão. – Mas olha, não te assustes...vai ser a única vez que vais sonhar isto, mas vai dizer-te muitas coisas. Vais perceber muitas coisas.
-Vou perceber-me?
-És um bom observador?
-Quando sei ver.
-Saber ver bem é um dom. Aprende a ver sempre bem.
-Como?
Daniel aproximou-se dele e tocou-lhe ao de leve na sobrancelha.
-Com esses olhos, com olhos como os teus, tens de saber ver sempre bem.
James fechou os olhos quando as mãos compridas do rapaz o acariciaram nas pálpebras.
-E se me esquecer?
-Não feches os olhos e não te esquecerás. É muito simples. Deixa só os olhos abertos e estará sempre tudo aqui para que o vejas.
James seguiu-o com o olhar, até as suas linhas representarem apenas um desenho vago na sua memória distorcida. O rapaz tinha-se ido embora. James levantou-se, mas o empregado dirigiu-se-lhe:
-A conta.

-Ah, sim… - murmurou, enquanto procurava dinheiro no bolso. Deixou três notas em cima do balcão. – Fique com os minutos.


Inércia, 2014

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