Movimentam-se lá fora, arrastando os membros em passadas consumidas e cansadas. 45ºC. Escorre e pinga um suor corrupto dos corpo que indica a proporção de uma calamidade avassaladora. O suor goteja em porções desmesuradas e densas pela pele sebenta e danificada mas rapidamente se desenvolve e rebola no sentido inverso e lenta vai regressar às suas origens infecciosas. O aglomerado de gotículas que desliza e blinda sobre a textura cintilante do corpo pesado que se movimenta em calor unificado e prepotente. Convulsiona-se num reboliço de psicadelismo alucinatório que progride e se complexifica e vai eclodir numa dança em batuque dos gérmens que deslizam pelos membros fétidos até aos lençóis alagados onde se complementam e anexam evoluindo em espécies tanto mais complexificadas. Persiste um odor hendioso no ar que o compartimento de paredes sólidas arduamente sustém e postumamente emerge pelas brechas das portas e frinchas das janelas onde depois se cruza com uma atmosfera limpida e candida que se balança no espaço vazio. Contaminam-se. Os corpos sãos e imaculados que rastejam desamparados numa sociedade de oportunidades ultrapassadas e condicionantes, programadas num jogo de passagens assinaladas em tempos e espaços decompostos pela noção irreal de conjunto, de ideia, de causa, de vida. Não há noção sem igual.
A aniquilação da temperatura amena é substituída pelo calor avassalador e embaçante de 50ºC que sobem a pico por uma ideia impalpável de sentido crescente cuja direcção sobe de forma estável e constante e, claro, numa direção exclusivamente crescente. Estrebuchavam nessa formação húmida de fluídos transpirados os germes originários da contaminação suprema. Fulmina um desagrado borbulhante que se alastra pelas zonas inalcançáveis do corpo e dos centímetros e metros que percorrem numa velocidade extasiante, deformando o espaço que vão deixando para trás, quais espermatozóides irradiados em direcção ao ovário receptivo, prestes a fecundar.
O Quarto do Óscar, 2011
You have to ask yourself what brought the person to this point
sábado, 3 de maio de 2014
domingo, 30 de março de 2014
de noite, nos medos, com os minutos.
um homem sentou-se
a seu lado e dirigiu-se ao empregado:
-Quero o mesmo que
ele está a beber.
Quando ouviu a
voz, lembrou-se de alguém, mas a cara não se lhe assemelhava, voltou a cabeça
na sua direção e viu um homem jovem de mãos grandes e rosto esplêndido. Lembrou-se
que na última vez que o tinha visto, ele tocava piano com uma elegância
extrema.
-Homem que tens as
minhas mãos…. - contemplou-o na luz quente do bar e achou-lhe a voz muito
arrastada e tentadora. - … tens sonhado?
-Sonhado? –
Respirou James, vexado.
-De noite, nos
teus medos.
James baixou a
cabeça e aproximou-a da superfície vermelha do balcão, sentiu um peso terrível
abatê-lo.
-É incrível –
suspirou – mas não me recordo.
-É uma pena… –
disse Daniel – …mas hoje vais sonhar.
-Porque é que
estás aqui?
-Porque a vida é
formada de ocasionalidades.
James olhou para
ele e sentiu qualquer coisa de anormal, uma aura praticamente inalcançável. Viu
três reproduções do mesmo homem sentadas a seu lado.
-Porque é que
estás a usar as minhas mãos?
Daniel olhou para
os dedos compridos e inspeccionou-os dos dois lados, depois voltou o olhar para
James e semicerrou os olhos.
-Porque as coisas
nem sempre parecem o que são.
-Sr., é mais um
whisky. – pediu, James.
-Dê-me outro
igual. – acrescentou, Daniel.
O barman serviu os
dois homens e encostou-se na pose anterior, a observá-los friamente.
-Quando é que vais
voltar ao trabalho? – inquiriu, o rapaz.
-Não sei…não sei o
tempo de nada.
-O tempo… - Daniel
olhou para a parede do estabelecimento onde surgiram quatro relógios idênticos,
mas com diferentes horas marcadas. James apoiou a cabeça nos antebraços porque
a sentia grande e a latejar, mas o seu olhar não se despegava dos oito
ponteiros que giravam nos quatro relógios. – Lá, fora da vidraça, não existe tempo.
James olhou para a
porta verde por onde ambos tinham entrado, mas não conseguiu compreender a que
é que ele se referia.
-É do tempo que me
estás a falar?
-É do teu
trabalho. Lá fora, já não existe nada. Vais perceber logo à noite quando
sonhares.
James olhou-o
muito fixamente e achou que era o homem mais espantosamente bonito que ele
alguma vez vira.
-Estou a ver-te
perdido num sítio qualquer, a usar as minhas mãos.
-Está na hora de
eu me ir embora – Declarou Daniel, enquanto se levantava e largava duas ou três
notas em cima do balcão. – Mas olha, não te assustes...vai ser a única vez que
vais sonhar isto, mas vai dizer-te muitas coisas. Vais perceber muitas coisas.
-Vou perceber-me?
-És um bom
observador?
-Quando sei ver.
-Saber ver bem é
um dom. Aprende a ver sempre bem.
-Como?
Daniel
aproximou-se dele e tocou-lhe ao de leve na sobrancelha.
-Com esses olhos,
com olhos como os teus, tens de saber ver sempre bem.
James fechou os olhos
quando as mãos compridas do rapaz o acariciaram nas pálpebras.
-E se me esquecer?
-Não feches os
olhos e não te esquecerás. É muito simples. Deixa só os olhos abertos e estará
sempre tudo aqui para que o vejas.
James seguiu-o com
o olhar, até as suas linhas representarem apenas um desenho vago na sua memória
distorcida. O rapaz tinha-se ido embora. James levantou-se, mas o empregado
dirigiu-se-lhe:
-A conta.
-Ah, sim… - murmurou,
enquanto procurava dinheiro no bolso. Deixou três notas em cima do balcão. –
Fique com os minutos.
Inércia, 2014
quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014
Se me aqueceres um pé, eu dou-te metade da minha metade.
-O quê? –
Jane escondeu a cara no cabelo e mordeu o lábio, tinha uma volumosa massa
capilar e olhos cor de avelã. – o que é que foi?
-Tens de te
tapar mais, senão distrais-me. – disse James.
Ela olhou
para o corpo e viu a forma redonda do mamilo que espreitava pela linha do
lençol e realçava na brancura do corpo.
-Isto? Estás
a ser muito mesquinho.
-São os
melhores seios do mundo.
-Oh… – gemeu
ela e deu um puxão ao lençol até este lhe tapar a cana do nariz. Debaixo do
algodão macio, sentiu as bochechas ruborizarem e o calor da respiração
aconchegá-la.
A chuva caía
lá fora com uma violência feroz, cada gotícula embatia na superfície das
moradias para, logo a seguir, deslizar e se desfazer no chão. James fechou os
olhos, moldou gentilmente o corpo nu à almofada e o calor do contacto começou a
envolvê-lo numa sonolência breve. A voz de Jane ecoou pela divisão como uma
música:
-Não me vais
contar?
-Quando
parar de chover.
-Não vai
parar, disseram na rádio que ia chover o dia todo.
James
suspirou e coçou a cabeça. Fora da cama, sentia-se um frio cortante.
-Não me
queres contar? – inquiriu ela.
-Não, porque
depois vais ter de guardar esta informação.
-Que mal tem
isso?
-Vai-te
consumir como me consome a mim.
-Olha,
segreda-me ao ouvido se te for mais fácil.
James abriu
os olhos e pensou durante um momento. Agilmente, virou-se e aproximou-se dela.
O cabelo caía-lhe sobre a almofada, com uma cor luzidia e a pele era de um
branco uniforme, imaculado, praticamente sem sinais a deformá-lo. Embora não
lhe visse os olhos, imaginava-os grandes, transfigurados pela vermelhidão do
sono, a cor da íris mais evidente, meio rasgados e doces. Sentiu a necessidade
de lhe beijar as pálpebras mas, ao invés, enterrou o queixo no pescoço dela e
inspirou profundamente, sussurrando de forma suave e com voz rouca:
-Ele só me
contou metade.
Jane
retorquiu, como quem dizia segredos:
-Metade
serve. Às vezes só é preciso saber metade.
-Posso
contar-te metade de metade.
-Metade de
metade não chega. Tenho de saber a metade que tu sabes.
James olhou
para o ombro dela e tentou adivinhar a expressão que lhe desenhava a cara.
Imaginava, com uma certa curiosidade, o calor que se lhe formava nas pernas e
apertava as suas, uma contra a outra, para que a sensação fosse igual.
-Não me vais
dar a tua metade?
-Olha, eu dou-ta
se me aqueceres um pé.
-Se te
aquecer um pé? – inquiriu ela.
-Se me
aqueceres um pé, eu dou-te metade da minha metade.
-Mas eu não
quero metade da tua metade.
-E se me
aqueceres o outro pé, dou-te a outra metade.
Num
movimento brusco, ela voltou-se para ele, e os seus narizes roçaram suavemente.
Mais do que sonolentos, os olhos pareciam aborrecidos, como se possuíssem vida
própria, dois globos oculares cheios de personalidade. Fitava-o de modo
intimidante, com as sardas no nariz a adoçarem-lhe a expressão. James
observou-a demoradamente e, antes que ela começasse a falar, conseguiu
contar-lhe quinze sardas.
-Se eu te
aquecer todo, contas-me a outra metade que não me queres contar?
James pensou
durante um momento na resposta.
-Conto.
Jane
aproximou-se dele e, delicadamente como uma criança, elevou as pernas debaixo
dos lençóis e colocou-as sobre as dele. Depois esfregou-as durante uns momentos
até a pele atingir uma temperatura agradável. Entrelaçou os pés nos dele e
aproximou-se mais da sua cara.
-Agora conta.
– Sussurrou, com o hálito quente a evaporar-se no ar frio do quarto.
-Quero
dar-te um beijo rápido.
-Não há
crueza aqui nesta cama. Estou a aquecer-te os pés e pronto.
-“É com o
último que tens de te preocupar”.
-Com o
último? – perguntou ela, surpreendida.
-Foi o que
ele disse e apontou o dedo para um dos quatro relógios na parede.
-Havia
quatro relógios?
-Todos
alinhados e com fusos horários diferentes.
Ela voltou o
olhar para o peito dele e, cabisbaixa, disse:
-É sempre
sobre o raio do tempo, não é?
James
olhou-a e sentiu a chuva a cair com perseverança. A certa altura, o impacto era
tanto que o vidro da janela parecia quebrar-se.
-Eu
disse-te. Agora vais ficar com isto em ti.
Jane
levantou os olhos para ele e observou-o com tristeza.
-Tenho medo
do tempo.
James abriu
a boca e colou os lábios em volta do nariz dela.
-Não
precisas de ter medo, é muito simples, o tempo ou te engole ou te deixa de
fora.
Jane expirou
com força e ele tirou a boca. Na ponta do nariz, reluziu um pequeno torrão de
saliva.
-Porquê o
último relógio?
James olhou
para a janela onde chovia, depois novamente para ela. Encostou a cabeça ao
cabelo dela e inspirou.
-Não sei.
Não percebi aquele tempo, não percebi aquele relógio.
-Assustou-te?
A boca dela
era pequenina e formava um círculo fechado. James riu-se e aproximou os lábios
dos dela, sentiu-lhe o calor da sua boca e uma certa humidade na respiração.
-O tempo não
me assusta. Mas aquele homem assusta-me.
-Porquê?
-Tem as mãos
compridas. Parece que temos as mesmas mãos.
Ela levou as
mãos até junto da cabeça e observou os dedos atentamente. Uma lágrima gorda
chegou-lhe ao canto do olho e rolou pela face.
-O que foi?
– perguntou James.
Jane pensou
durante um momento na resposta, enquanto escutava a violência da chuva lá fora.
Se fosse outro dia qualquer, arrastá-lo-ia da cama, mas aquele era um dia muito
específico. Tinha-se esquecido que existia uma hora qualquer por onde se guiava
e o calor da cama envolvia-a num conforto inigualável. Enquanto a lágrima
escorregava, pensou que havia já muito tempo que não chorava e, perturbada,
deixou escorrer outra. Olhou para James e ele olhou para ela. Viu-lhe a lágrima
gorda na ponta do queixo, mas não se pronunciou.
-Agora é a
minha vez. – gemeu ela, baixinho e voltou-se de costas. – Aquece-me os dois pés
e eu dou-te a parte inteira.
Delicadamente,
descruzaram as pernas e James envolveu-lhe os pés com os seus, maiores em toda
a sua proporção, enquanto ela fechou os olhos e deixou escorrer mais duas
lágrimas gordas.
Inércia, 2014
terça-feira, 11 de fevereiro de 2014
É tudo muito estranho. As coisas ou são enormes ou muito pequenas.
-Porque é que me
mandas fechar os olhos?
-Porque acho que
vais aprender a ver melhor quando o souberes fazer.
-Mas não é paz que
tu me queres dar.
Cara olhou para
ele.
-Pois não, mas
devias tentar ter algum tipo de paz com essa tua despersonalização.
-Não podem ser
três ao mesmo tempo.
-Ora! – exclamou
ela, de olhos arregalados – Também não pode ser só um. Deixa as vozes falarem,
talvez algumas tenham coisas mais interessantes para dizer do que tu.
-Sinto uma
estranheza desconcertante quando dizes isso. É como se não estivéssemos a falar
de mim.
-E não estamos
sempre. – Cara inclinou-se para o parapeito, ostentava uma postura física solta
e ameninada. – Mas não quero que te sintas estranho no teu próprio parque.
James lembrou-se
do primeiro dia em que a viu, o cabelo cortado ao nível do pescoço a
balançar-se no ar frio do parque, tinha olhos azuis e soava deliciosa.
-Pensava que tinha
sido essa a premissa com que nos tínhamos conhecido.
-É sempre tudo
como nós queremos que seja. Agora, isto diz-nos demasiado, a ti e a mim.
James olhou para
longe e evitou fixá-la. Ela continuou:
-Se deixares de cá
vir, vais sentir uma falta terrível de qualquer coisa.
Ele mordeu a
língua e fechou os olhos, sabia ao que ela se referia.
-De ti?
-Já achas que vais
sentir saudades minhas?
-Não sei. – Ele abriu
os olhos e a primeira coisa que viu foi uma imensidão azul apoderar-se dele –
Eu gosto de falar contigo.
-É uma
corroboração?
-É um facto.
-É só um facto?
-Que queres mais
que seja?
-Uma proposta. Ou
melhor, uma confissão.
James olhou para
ela e viu dois olhos azuis a implorarem para brincar. Veio-lhe à cabeça uma
imagem do gato, depois de Jane e, de seguida, olhou para as mãos, compridas e
elegantes, impróprias de um homem e sentiu-se completo.
-Tu não me vês
como eu sou, vês-me como me queres ver.
-Ora, também tu.
James fixou-a.
-Não. Eu só não
quero ver mais nada.
Cara acendeu um
cigarro e ele ouviu-o ser fumado, pouco a pouco. Instaurou-se um silêncio que
em muito era agradável. Um casal passou de mãos dadas, ouviram-se os passos
silenciosos a descolar do chão e Cara disse, como se tivesse estado a suster as
palavras:
-Eu quero
ajudar-te.
-Porquê?
-É uma necessidade
tonta de fazer felizes os homens que não me são nada.
-É só porque não
te são nada e não os conheces verdadeiramente?
-É só porque os
idealizo. – James viu-lhe um brilho específico nos olhos, que normalmente antecedia
a lágrimas – Estou apaixonada por uma idealização romântica de ti.
Ele tirou um
cigarro do bolso e sentiu um arrepio agonizante gelar-lhe o corpo. Era curioso
porque, em simultâneo, sentia prazer com aquilo.
-Não devias
imaginar tanto.
Inércia, 2014
domingo, 9 de fevereiro de 2014
sono, nos olhos.
Jane olhou para as
pernas esticadas no sofá e James aproveitou para dar a volta e sentar-se ao
lado dela. Segurou o tabuleiro no colo e estendeu-lho, ela encostou o nariz à
bandeja e observou os pedaços com demorada atenção, contorcendo a cabeça para a
linha do tabuleiro.
-Não sei por que
pedaço devo começar.
-Vais comê-los
todos, por isso creio que podes começar por aquele que, no teu instinto, te
agradar mais.
-A ordem com que
levo cada pedaço à boca é muito importante. Imagina só que, por alguma razão,
não os degusto de forma apropriada?
-A noite vai
correr-nos mal?
-A noite pode
correr incrivelmente mal. Não brinques com sequências.
-Eu não brinco com
nada. Estou a cozinhar-te o jantar.
-E agora o
cigarro?
-Que tem o
cigarro?
-Qual é que deve
ser o primeiro?
James olhou para
os dez cigarros alinhados em volta das chávenas de café e pensou que,
fundamentalmente, ele também não sabia.
-Como é que eu
tenho a certeza se estou certo?
-Ora. Essa é a
minha questão.
-Ouve… - disse
James – eu acho que devíamos tirar um cigarro e pô-lo na boca, sem
complexidade.
Jane fechou os
olhos e tirou um cigarro. Depois voltou lá com a mão e apanhou um pedaço de
queijo que enfiou rapidamente na boca. Ele observou-a a saborear o torrão de
queijo de olhos fechados e comoveu-se, estava a juntar-se tudo num cenário
lógico e agradável, com a música a corroborar.
-Se aumentares o
volume um nível, acho que vou ter um orgasmo.
James riu-se,
olhou para ela e viu-lhe as pálpebras cerradas, inundadas de prazer e
estremeceu.
-Não estou
acostumado a que as mulheres me sintam assim, sem sequer lhes tocar.
-O teu espírito
invade-me muitas vezes, não é nenhuma surpresa. Mas hoje, o mérito é do queijo.
-Não sei o que é
que estás a sentir, mas parece muito bom.
Levou a mão ao
tabuleiro, fechou os olhos e, aleatoriamente, tirou um pedaço de queijo que
colocou rapidamente dentro da boca. Enquanto deixava que o amante alcançasse o mesmo
estádio que ela, Jane aproximou o dedo da mão dele e acariciou-o lentamente.
-O que é que estás
a fazer? – perguntou ele, alarmado mas relaxado.
-Ia contar,
apetece-me fazer matemática.
Ele abriu um olho
e voltou-o para ela.
-No escuro não se
conta. Só se for de cabeça.
-De cabeça são
quinze. Mas a minha memória é desconfiável.
-Sempre foste
assim, só te lembras do que queres.
-Lembro-me de
tudo. Lembro-me sempre de tudo. Tão bem que sei que tens dezassete sinais.
-E mais o quê?
-E que agora a
seguir vais dar-me whisky.
Ele encostou a cabeça
ao ombro dela.
-Se te lembras de
tudo isto, não vai ter piada.
-Presumo que
tenhas inserido um fator surpresa.
-Porque presumes
isso?
-Porque já sabes
que eu me lembro sempre. E que presumo sempre.
-Um desses
cigarros tem uma aliança.
Jane afastou-se dele
e olhou-o com espanto.
-Nem a surpreender-te
sou bom.
Ela riu-se.
-Agora
conseguiste. Vai buscar a garrafa. Já tenho fome para o doce.
Ele levantou-se e
voltou com uma garrafa de whisky e dois copos.
-Quando encontras
uma pessoa sentada sozinha a uma mesa, a beber a tua bebida favorita é porque é
para casar.
Ela olhou para ele
e um sorriso discreto formou-se-lhe nos lábios.
-Foi isso que
pensaste naquela noite?
-Não. – Fez uma
pausa e pensou durante um momento - Foi um bocadinho. Primeiro pensei que estava
feito.
-Depois pensaste
em casamento.
-Depois fiquei com
sono, mas ainda te levei para casa.
-Sono? Não te li
sono nos olhos.
-Tenho olhos
discretos.
-Isso é que é uma
verdadeira mentira. Vi neles os primeiros raios de tristeza. Antes, olhavas
para mim com timidez.
-Intimidado?
-Não. Com timidez.
Uma timidez dócil, quase como se te visse o lábio de baixo a tremer. Como se me
estivesses a contemplar, mas com tristeza.
-Porquê tristeza?
-Não sei, se
calhar achavas que eu me ia embora.
James tentou lembrar-se,
mas subitamente aquele ano pareceu-lhe muito longe.
-Acho que o que
acontece é que eu nunca soube olhar para uma mulher.
-Eu acho que era a
melhor forma de me olhares. Via-te uma certa nostalgia nos olhos. Era como se
fosse observada pela tristeza. As mulheres percebem a tristeza, eu percebia-te
os olhos, percebia muito bem o que vias em mim.
-Não te assustava
achares que eu sabia que te ias embora?
-O medo é o melhor
impulso no início de um relacionamento. E não me fui embora.
-Mas os meus olhos
continuam tristes.
-Agora olhas para
mim com medo de que me vá embora. Não é a certeza de que vou, é o receio de que
vá.
James olhou para
ela e depois para as mãos. Era engraçado que, ultimamente, se lembrassem desse
tempo com tanta frequência. Pensou que isso poderia significar que estavam a
chegar a qualquer sítio. Invocar o início no fim.
-Mas hoje não,
James, hoje eles estão diferentes.
-Estão antigos?
-Estão a lembrar-se.
Ficas bonito quando te lembras das coisas.
-Eu já não me
lembro de quase nada. – disse e voltou a encostar-se.
-As memórias não
são o que parecem.
James afastou-se
dela e olhou-a com especulação.
-Que queres tu
dizer com isso?
-Não sei. Pensei
nisso e pareceu-me bem. Acho que é como o tempo. Tens medo das memórias, assim
como eu tenho medo do tempo.
-Porque são
contáveis?
-Porque te
restringem. Se não existisse passado, não estavas chateado com a tua situação
no presente porque não tinhas termo de comparação.
Ele sentiu a
energia dissipar-se-lhe pelas pontas dos cabelos.
-Mas, James,
lembrares-te como hoje é bom. Diz muitas coisas sobre ti.- Ele olhou para ela
através do ombro ossudo, viu brilharem-lhe os olhos no meio da luz intimista. –
Todo o ritual desta noite diz muito sobre ti ao longo dos anos. Não chores
porque já não te lembras, porque intimamente lembras-te. Recordar não é sentir exactamente
o mesmo.
-Vais deixar-me
cansado para continuar.
Inércia, 2014
domingo, 2 de fevereiro de 2014
só a falar de café.
Cheirou-lhe a café
e olhou para a cozinha, mas não estava lá ninguém, a sua mente começara a
fabricar o odor em devaneio. Olhou em redor e substituiu os ares da casa pelos
de há uns anos atrás, transportou-se para uma noite, quatro anos antes, e viu
Jane regressar com duas chávenas quentes na mão.
-Era mesmo disto
que estava a precisar. – disse ele.
-Se continuas a
beber café dessa forma, vou ter de me apaixonar por ti.
-Apaixonas-te
sempre por homens que bebem muito café?
-Primeiro provas,
depois provas novamente, depois ficas louca.
-Sabe-te sempre ao
mesmo?
-É café, mas não
sabe sempre ao mesmo.
-E os cigarros?
-Só tornam a vida
mais interessante. Sem cigarros, isto era tudo cinzento.
-E quando
deixarmos de fumar?
-Vamos arranjar
outra coisa qualquer para levar com as culpas.
-Acho-te muito sábia
para uma rapariga.
-Sou uma pessoa
sensata. E percebo as coisas.
-As coisas?
-As coisas todas.
O teu café é especial e mais não te posso dizer.
-Não gosto de
ficar a pensar demasiado nas coisas.
-Porque ficarias?
Estamos só a falar de café.
James riu-se, olhou-a
uma vez, voltou a olhar para ela e depois corou.
-Tens que aprender
a ser subtil.
-Eu já sou subtil.
-Isso é o que tu
achas. Não há descrição em ti, leio-te as intenções todas.
Ele recostou-se no
sofá e ficou a observá-la, era misticamente bela.
-Chateia-te?
-De forma nenhuma.
Até acho querido, quereres dizer e não dizeres.
-Mas não dirás
isso para sempre.
-Conto que não o
farás para sempre.
-Talvez não. Mas
talvez fizesse. E então? Deixaria de ser querido?
-Passaria a ser um
problema.
-Talvez passasse.
Como lidas com problemas dessa natureza?
Jane recostou-se
no sofá, levou a chávena à boca e, em seguida, deu um bafo no cigarro. Expirou
o fumo e disse:
-Normalmente
recosto-me, bebo um café e fumo um cigarro.
-E o problema?
Jane agitou a mão
no ar, apontando para ele:
-Esparramado assim
à minha frente.
-Que problema
tonto.
-Como a maioria
deles todos.
-Acho que tens
razão, mas devo advertir-te: eu sou um homem problemático. Caótico.
Jane olhou para o
ar e encostou a mão à cabeça, parecia absorta nalgo mágico.
-As pessoas
arranjam medos esquisitos.
-Acho que
arranjam. Uma vez conheci uma pessoa que tinha medo de barrigas.
-Isso não é nada!
Uma vez conheci uma pessoa que tinha medo dela própria.
-Isso é terrível.
-É, não é?
-Como é que se
salvou?
-Ainda é cedo para
dizer. Daqui a uns anos conversamos sobre isto.
Inércia, 2014
terça-feira, 28 de janeiro de 2014
Fecha-os de novo. Vá lá, fecha.
-Sentei-me toda a
tarde a pensar se não virias, até que me apercebi que precisavas de me ver com
outros olhos.
-Olá, Cara.
-Viste alguma
coisa nova?
-Vi-te como uma
estranha.
-Mesmo já não
sendo estranhos?
-Nunca deixámos de
o ser.
Cara suspirou e
sentou-se ao lado dele, na relva.
-Observas-me tão
detalhadamente, ao longe, que acabas por não ver nada.
-É a observação
mais interessante, o que vejo pode não significar nada.
-Mas por alguma
razão, sabe-te bem imaginar que sim.
-Não sei.
-Eu sei, deixo de
ser uma personagem minha para passar a ser uma tua. Olhas-me com olhos de
artista e projectas em mim o que bem entendes, como se fosse moldável.
James ficou em silêncio, pensou naquelas
palavras e concluiu que ela tinha razão. Cara tirou um cigarro de uma
cigarreira de metal e voltou a guardá-la, com o cigarro preso nos dedos
enluvados, acendeu-o e fumou-o, atirando-lhe o fumo para a cara.
-Mostra-me com os
teus olhos.
-Não.
-Não tenhas pena
se deixares de me ver.
-Porque teria?
-Não sei, estou só
a alertar-te. Normalmente os homens deixam de me ver ao fim de uns tempos. Ao
início, veem-me muito bem, com os pormenores todos, depois ficam cegos, já não
sabem para onde olhar.
-Deve ser dos teus
olhos.
-Vai sempre dar
aos olhos, não vai?
-A culpa é da
Jane. Estava sempre a falar dos meus olhos e agora não reparo noutra coisa nas
pessoas. Ou se tem uns olhos honestos ou as pessoas não interessam nada.
-É por isso que
toda a gente sente um incómodo físico quando está na tua presença. - James
tentou olhá-la no escuro, mas a noite já tinha caído e não via nada. – As pessoas
veem-te e reconhecem qualquer coisa em ti mas nem elas nem tu percebem o que é.
-Isso não soa bem.
-Intimidas as
pessoas com a tua tristeza.
-Intimido-te a ti?
-A mim não. Eu
intimido as pessoas com a minha beleza.
-Deve ser
terrível.
-Ora, é uma
questão de hábito. Quando começas a compreender que a tua figura tem um impacto
nas outras pessoas, adquires um benefício na vida.
-As pessoas perdem
demasiado tempo a decifrar uma coisa inútil como essa.
-Meu caro, a tua
figura é o teu mundo, em certa medida. Não vais a lado nenhum sem ela. Neste
parque, é a única coisa que estas pessoas veem.
-E aqui no escuro?
-Aqui no escuro, podes
fechar os olhos que a vida é sempre igual.
James fechou os
olhos e sentiu a mesma calma controlá-lo.
-O que é que
sentiste?
-Com o quê?
-Eu sei que
fechaste os olhos, era claro que o ias fazer. O que sentiste?
-Que me estava a
entregar a qualquer coisa que não queria.
-Fecha-os de novo.
Vá lá, fecha.
James fechou os
olhos e esperou. Desta vez, começou por sentir, inicialmente, um desapegar da
realidade, o negro embarcou-o numa escuridão mais simbólica e mais abrangente,
que não era só dos dois olhos fechados. Deixou de sentir a respiração dela a
seu lado e o ruído surgiu, quebrando uma junção com a realidade que aquela
relva debaixo do seu corpo procurava salvaguardar. Era um ruído que ensurdecia.
Cara aproximou-se dele e segredou-lhe sedutoramente:
-Acaba por saber
bem, não é?
Inércia, 2014
quinta-feira, 23 de janeiro de 2014
O que tu e eu temos não tem nome.
-Preferias ter-me
seguido durante mais tempo? – ele olhou subitamente para ela – Não te
preocupes. Não me sinto assustada. Só quis vir perceber o que te interessava
tanto.
-Não foi com maldade,
tenho tendência a fixar as pessoas.
-És um observador?
-Não sei.
-Acabaste de me dizer
que tens tendência a ver e fixar as pessoas.
-Talvez seja.
-Que viste em mim?
James questionou-se se
ela o conseguiria ler através das lentes dos óculos. Sentia uma descontração da
sua parte que parecia requerer cautela na forma como ela conduzia aquela conversa,
na forma como o fora abordar.
-Pareceste-me… - James
puxou um bafo quente do cigarro e expeliu-o, o cinzento do fumo adquiriu um tom
azulado – …deslocada.
-Deslocada do parque? -
O olhar dela estava inundado de curiosidade.
-Deslocada de ti.
-Ah…estou a ver.
Pareci-te vazia.
-Pareceste-me
invulgarmente triste.
-Costumas interessar-te
por pessoas tristes?
James pensou na resposta
durante um momento e retorquiu:
-Não.
-Então foi a primeira
vez?
-Sim.
-Quase que me sinto
lisonjeada.
Ele puxou um trago do
cigarro e perguntou timidamente:
-Posso fazer-te uma
pergunta?
-Uma vez que é a
primeira vez que isto te acontece, com certeza.
-Porque é que choravas?
Cara olhou para o lago
onde se refletia o sol e levou pela última vez o cigarro à boca. Quando falou,
as palavras soaram quase musicais.
-Sinto que ando a
perder pedaços de mim.
James olhou
repentinamente para ela, a rapariga retribuiu-lhe o olhar e sorriu
amigavelmente. Ainda se conseguiam ver nos seus olhos as lágrimas secas e a
vermelhidão do choro.
-Há quanto tempo?
-Toda a minha vida.
-Andaste a perder
pedaços de ti durante toda a tua vida?
-Parece ilógico mas não
o é tanto quanto parece.
-Poderás explicar-me?
-Não sei se posso.
Provavelmente acharás que sou louca.
-Não.
-Estou-me marimbando
para que aches que o sou, na realidade. Talvez o seja, um pouco louca.
Ela viu que ele olhava
para a vedação do lago, com os óculos escuros a resguardarem-lhe a verdadeira
expressão.
-Não queres tirar os
óculos?
-Porquê?
-Porque gostava de ver
os teus olhos. Estás a ver os meus e não é completamente justo.
James tirou os óculos e
olhou para ela, a rapariga não se expressou inicialmente, depois riu-se e
voltou a fixar a vedação.
-Com que então também
tens olhos tristes.
-Vês isso nos meus
olhos?
-Vejo. Tens os olhos
mais tristes que vi hoje.
-Viste muitos?
-Alguns. As pessoas
tristes vêm ocasionalmente para aqui. É um sítio adequado à tristeza, não
achas?
-Talvez.
Ela recostou-se no
banco e calou-se, James sentiu-lhe a respiração e um cheiro feminino que era muito
diferente daquele a que ele estava habituado, parecia de certa forma mais
agridoce.
-Dá-me outro cigarro.
Fumaram o cigarro em
silêncio e os pensamentos seguiram trâmites opostos. Já era tarde e estava a
ficar na hora de regressar a casa, a noite cairia brevemente e seria demasiado
escuro para fazer o percurso inverso a pé. Havia um reconforto peculiar no
silêncio que partilhava com esta estranha. A vozearia de umas crianças ao longe
cessou e James aproveitou a deixa e irrompeu:
-Está a ficar tarde, vou andando.
-Certamente. Adeus,
estranho.
-James.
-Foi um prazer, James.
James esboçou aquilo
que mais se aproximava de um sorriso e levantou-se.
-Estranho, não achas?
Ele voltou-se.
-O quê?
-O que tu e eu temos
não tem nome.
domingo, 12 de janeiro de 2014
Cheira-me a café.
James levantou-se e foi
buscar o vinil de Serge Gainsbourg, Histoire
de Melody Nelson e colocou-o em
reprodução na sala. A atmosfera mudou consideravelmente, ela tinha razão, a
descontracção de todo o seu ser sentiu-se inclusive na postura física que adotava.
-Isto incendeia-me o
peito. – disse ela enquanto pousava o copo.
-O whisky?
-Sabe a saliva, mas
arde.
-Não vamos por aí,
algumas salivas também ardem.
-Sim, naturalmente.
-Eu prometi que te ia
descrever e estás a distrair-me propositadamente. Ou então é a música que me
distrai a mim.
-Olha, eu não tenho
nenhuma objeção que me leias mais tarde. Afinal de contas era pouco tempo para
teres uma leitura fiável de mim.
James inclinou-se mais
para o lado onde Jane estava sentada.
-Então que sugeres?
-Que me dês mais whisky
e queijo. Que me deixes fumar muitos cigarros.
-E depois?
-E depois quando eu
achar que já estou demasiado bebida, vou sentir-me dormente e muda e
logicamente irás levar-me a casa. Amanhã, eu procuro-te e jantamos.
-Isto é o início da
relação?
-É o mais perto disso.
-Que calorosa que te
estás a revelar.
-Não digas isso como se
não te tivesse prevenido.
-É verdade, fui
alertado.
-Foste mais que
alertado. Amanhã vai doer-te a cabeça a pensares nisto.
-Não pode ser assim tão
mau, não és demente.
-Cheira-me a café.
-Não te cheira a café.
Jane olhou para James e
riu-se.
-Gostavas que te
cheirasse a café?
-Talvez gostasse. Mas
do que gostava mesmo era de fazer café contigo.
James levantou-se e estendeu-lhe
uma mão, Jane agarrou-a e ele ajudou-a a levantar-se. Conduziu-a até à cozinha
e encheu o recipiente da máquina de café com água, ligou a máquina à
eletricidade e apoiou-se na bancada da cozinha a fixar Jane.
-Com todos estes anos
de experiência, já cheguei à conclusão que as taras por café são as piores.
Inércia, 2014
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