Homem (apenas voz):
Eu gosto de me afastar, de nadar até ao ponto mais fundo da piscina e observar as pessoas que dividem este espaço comigo.
(pausa)
Reparo no quanto somos parecidos dentro de água, as toucas, os fatos de banho, a pele molhada. Acabamos por nos tornar seres de pele análoga com modelos e colorações delimitados que reflectem a nossa personalidade e gostos pessoais.
(pausa)
São tantas as coisas que nos passam ao lado.
(pausa)
Mas a piscina nem sempre está assim.
Depois da avaliação à piscina o narrador olha para o restante edifício. Vemos as paredes do edifício, uma de vidro e as restantes opacas. Vemos o tecto. Há luzes bastante violentas situadas nas paredes laterais da piscina. No lado esquerdo, está uma espécie de arrecadação com os colchões, bolas e barbatanas para uso dos frequentadores da piscina. O narrador olha para a parede de vidro do lado direito e vê-se reflectido nela.
Homem (apenas voz):
Estou demasiado cansado para parecer atractivo.
Vemos a pista 2. Um professor a gritar com a rapariga dos olhos castanhos. Ela baixa a cabeça para se certificar que o nosso narrador não ouvira aquela repreensão desastrosa. Ele reparara, mas não lhe interessa.
Vemos um relógio na parede, um pouco acima da cena do professor e da aluna. Um zoom leva-nos ao relógio. O tempo passa devagar, os ponteiros movimentam-se em câmara lenta. Faltava ainda vinte minutos de natação.
Vemos a cara do narrador, cansado, um pouco irritado e aborrecido por ainda faltar tanto tempo. Vemo-lo levantar a cara e olhar perplexamente para o bar por cima da piscina. O nosso ângulo muda e conseguimos ver o bar da mesma perspectiva que o narrador. Vemos a rapariga dos anos 20. Cabelos loiros, caracóis, pelos ombros. Olhos azuis, claros, bonitos. Lábios muito vermelhos, como habitualmente e uma roupa bastante formal. Branca e justa. Com um cinto preto pouco abaixo do peito. Vemos um excesso de iluminação na face, para lhe dar um ar mais genuíno. Ela olha-o misteriosamente. Vemos o actor parado, paralisado a olhar para ela, só se ouve a sua respiração a aumentar.
O narrador relaxa os músculos e deixa-se cair até ao fundo da piscina, fecha os olhos para a visualizar melhor, isso é nos dado a entender pelas expressões faciais. Empurra o chão com os pés para voltar ao de cima. Enquanto desce, a música vai-se tornando mais fraca e fraca até que se deixa de ouvir. Apenas se visualizam alguns traços do seu corpo, mas com uma iluminação negra. Como se as luzes da piscina se tivessem apagado. Logo depois de o fazer e voltar à superfície apercebe-se que as luzes estão apagadas. Nada ilumina a piscina interior com excepção da lua. Os professores desapareceram, os frequentadores também. A música parou.
Temos uma visão escura de toda a piscina, vemos algumas partes da cara do actor devido à luz da lua que passa através da parede de vidro. Começamos a ouvir um som, uma melodia como que vinda do interior de um búzio. Ouvimos o coração do narrador a bater. Vemo-lo em pânico, totalmente desconfortável. Depois ouvimos um silêncio repentino e vemos o narrador agarrado às divisórias das pistas a nadar até à zona mais baixa da mesma.
Homem:
Heyy! (grita)
Está aqui alguém?
O tempo passa devagar. Vemos o relógio, pouco iluminado pela lua. Vemos o narrador, com a respiração demasiado ofegante, agarrado às divisórias da piscina. Vemos os seus pés no fundo da água, vemo-lo hesitar em pô-los no solo. Vemo-lo avançar e ao nadar rapidamente com medo, bater com um pé na escada da piscina.
Homem:Arghhh.
Merda!
Ouve-se a voz do narrador ecoar e percebe-se que ele se ouvia a si próprio. Ouvimo-lo gritar e bater com as mãos na superfície água. Ouvimos um segundo som. Alguém entra na água. A música Secret Garden – Dave Holland Quartet toca. Não vemos o que entra, apenas ouvimos. Uma nova respiração. Mais calma, mais delicada. Um pequeno chapinhar na água. Ouvimos o narrador gelar de medo. A sua respiração corta-se totalmente e ouvimos o coração a bater mais e mais. Não fala, não respira.
Homem (apenas voz):
E depois… senti qualquer coisa a crescer nos meus calções…
(pausa)
E outra a tentar tirarmos.
E outra a tentar tirarmos.
Por "Narrador" em Lábios Vermelhos (Guião)
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