-O quê? –
Jane escondeu a cara no cabelo e mordeu o lábio, tinha uma volumosa massa
capilar e olhos cor de avelã. – o que é que foi?
-Tens de te
tapar mais, senão distrais-me. – disse James.
Ela olhou
para o corpo e viu a forma redonda do mamilo que espreitava pela linha do
lençol e realçava na brancura do corpo.
-Isto? Estás
a ser muito mesquinho.
-São os
melhores seios do mundo.
-Oh… – gemeu
ela e deu um puxão ao lençol até este lhe tapar a cana do nariz. Debaixo do
algodão macio, sentiu as bochechas ruborizarem e o calor da respiração
aconchegá-la.
A chuva caía
lá fora com uma violência feroz, cada gotícula embatia na superfície das
moradias para, logo a seguir, deslizar e se desfazer no chão. James fechou os
olhos, moldou gentilmente o corpo nu à almofada e o calor do contacto começou a
envolvê-lo numa sonolência breve. A voz de Jane ecoou pela divisão como uma
música:
-Não me vais
contar?
-Quando
parar de chover.
-Não vai
parar, disseram na rádio que ia chover o dia todo.
James
suspirou e coçou a cabeça. Fora da cama, sentia-se um frio cortante.
-Não me
queres contar? – inquiriu ela.
-Não, porque
depois vais ter de guardar esta informação.
-Que mal tem
isso?
-Vai-te
consumir como me consome a mim.
-Olha,
segreda-me ao ouvido se te for mais fácil.
James abriu
os olhos e pensou durante um momento. Agilmente, virou-se e aproximou-se dela.
O cabelo caía-lhe sobre a almofada, com uma cor luzidia e a pele era de um
branco uniforme, imaculado, praticamente sem sinais a deformá-lo. Embora não
lhe visse os olhos, imaginava-os grandes, transfigurados pela vermelhidão do
sono, a cor da íris mais evidente, meio rasgados e doces. Sentiu a necessidade
de lhe beijar as pálpebras mas, ao invés, enterrou o queixo no pescoço dela e
inspirou profundamente, sussurrando de forma suave e com voz rouca:
-Ele só me
contou metade.
Jane
retorquiu, como quem dizia segredos:
-Metade
serve. Às vezes só é preciso saber metade.
-Posso
contar-te metade de metade.
-Metade de
metade não chega. Tenho de saber a metade que tu sabes.
James olhou
para o ombro dela e tentou adivinhar a expressão que lhe desenhava a cara.
Imaginava, com uma certa curiosidade, o calor que se lhe formava nas pernas e
apertava as suas, uma contra a outra, para que a sensação fosse igual.
-Não me vais
dar a tua metade?
-Olha, eu dou-ta
se me aqueceres um pé.
-Se te
aquecer um pé? – inquiriu ela.
-Se me
aqueceres um pé, eu dou-te metade da minha metade.
-Mas eu não
quero metade da tua metade.
-E se me
aqueceres o outro pé, dou-te a outra metade.
Num
movimento brusco, ela voltou-se para ele, e os seus narizes roçaram suavemente.
Mais do que sonolentos, os olhos pareciam aborrecidos, como se possuíssem vida
própria, dois globos oculares cheios de personalidade. Fitava-o de modo
intimidante, com as sardas no nariz a adoçarem-lhe a expressão. James
observou-a demoradamente e, antes que ela começasse a falar, conseguiu
contar-lhe quinze sardas.
-Se eu te
aquecer todo, contas-me a outra metade que não me queres contar?
James pensou
durante um momento na resposta.
-Conto.
Jane
aproximou-se dele e, delicadamente como uma criança, elevou as pernas debaixo
dos lençóis e colocou-as sobre as dele. Depois esfregou-as durante uns momentos
até a pele atingir uma temperatura agradável. Entrelaçou os pés nos dele e
aproximou-se mais da sua cara.
-Agora conta.
– Sussurrou, com o hálito quente a evaporar-se no ar frio do quarto.
-Quero
dar-te um beijo rápido.
-Não há
crueza aqui nesta cama. Estou a aquecer-te os pés e pronto.
-“É com o
último que tens de te preocupar”.
-Com o
último? – perguntou ela, surpreendida.
-Foi o que
ele disse e apontou o dedo para um dos quatro relógios na parede.
-Havia
quatro relógios?
-Todos
alinhados e com fusos horários diferentes.
Ela voltou o
olhar para o peito dele e, cabisbaixa, disse:
-É sempre
sobre o raio do tempo, não é?
James
olhou-a e sentiu a chuva a cair com perseverança. A certa altura, o impacto era
tanto que o vidro da janela parecia quebrar-se.
-Eu
disse-te. Agora vais ficar com isto em ti.
Jane
levantou os olhos para ele e observou-o com tristeza.
-Tenho medo
do tempo.
James abriu
a boca e colou os lábios em volta do nariz dela.
-Não
precisas de ter medo, é muito simples, o tempo ou te engole ou te deixa de
fora.
Jane expirou
com força e ele tirou a boca. Na ponta do nariz, reluziu um pequeno torrão de
saliva.
-Porquê o
último relógio?
James olhou
para a janela onde chovia, depois novamente para ela. Encostou a cabeça ao
cabelo dela e inspirou.
-Não sei.
Não percebi aquele tempo, não percebi aquele relógio.
-Assustou-te?
A boca dela
era pequenina e formava um círculo fechado. James riu-se e aproximou os lábios
dos dela, sentiu-lhe o calor da sua boca e uma certa humidade na respiração.
-O tempo não
me assusta. Mas aquele homem assusta-me.
-Porquê?
-Tem as mãos
compridas. Parece que temos as mesmas mãos.
Ela levou as
mãos até junto da cabeça e observou os dedos atentamente. Uma lágrima gorda
chegou-lhe ao canto do olho e rolou pela face.
-O que foi?
– perguntou James.
Jane pensou
durante um momento na resposta, enquanto escutava a violência da chuva lá fora.
Se fosse outro dia qualquer, arrastá-lo-ia da cama, mas aquele era um dia muito
específico. Tinha-se esquecido que existia uma hora qualquer por onde se guiava
e o calor da cama envolvia-a num conforto inigualável. Enquanto a lágrima
escorregava, pensou que havia já muito tempo que não chorava e, perturbada,
deixou escorrer outra. Olhou para James e ele olhou para ela. Viu-lhe a lágrima
gorda na ponta do queixo, mas não se pronunciou.
-Agora é a
minha vez. – gemeu ela, baixinho e voltou-se de costas. – Aquece-me os dois pés
e eu dou-te a parte inteira.
Delicadamente,
descruzaram as pernas e James envolveu-lhe os pés com os seus, maiores em toda
a sua proporção, enquanto ela fechou os olhos e deixou escorrer mais duas
lágrimas gordas.
Inércia, 2014