You have to ask yourself what brought the person to this point

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

vinte dedinhos

Atravessa-lhe o pensamento com rapidez a sequência de ocorrências que tomaram lugar na noite anterior e incomodado pela presença realista que o taxista lhe tem na mente, Joan volta-se de costas para Sarah e esconde as mãos debaixo da almofada, de olhar fixo no chão, paralisado pela revivência de sensações que precisa recordar, na amnésia alcoólica do seu delírio passado. Os olhos inebriantes do homem bloqueiam-no num momento irreal de avaliação em que o peso do seu erro para atingir o auge, Sarah não existe neste sonho e não faz sentido que ela se exteriorize, Crystal está apenas presente em forma idealista: um cheiro, um sabor, um toque, uma ideia abstracta de sedução. Joan cerra os olhos e força-os a cerrarem-se mais nesta incapacidade em observar. O coração acelera-se-lhe tremendamente no peito e uma distância irreal afastam-no da realidade perceptível. Escuta-se exclusivamente a si mesmo no centro daquele desenfreado dessincronizado e pensa em como uma coisa tão mundana quanto uma mulher bonita lhe veio destruir a paz. Os olhos do taxista são de tal forma maléficos que voltam para o penumbrar e, surgindo no canto do quarto, espreitam-no em afirmada presença, os olhos a que nada escapa, “deixe-me olhar melhor para si, homem”, ouve-os dizer.
O suor desliza-lhe indiferente pelo peito, gotícula abundante atrás de gotícula abundante, o som de um relógio escuta-se longínquo na cozinha, aquela sempre presença do tempo que passa e que o aterroriza, os dois olhos que percorrem as paredes ínfimas do quarto, são tão flexíveis quanto duas pernas porque se fazem entender em diversos pontos distintos.
-O senhor precisa de descansar, não lhe faz bem apaixonar-se por uma rapariga dessas que se alimenta da sua alma. – ouve o homem dizer, na sua voz mais confessional, paternalista e trocista, o homem não quer verdadeiramente saber dele, só está ali presente ao canto do quarto para o assombrar, quer rir-se dele, o artista que perde o controle do seu rumo.

-O senhor vá dormir e tente compreendê-la! Faça o que fizer já é muito tarde, a criatura já se lhe apoderou do corpo. Agora o máximo que pode fazer é dar-lhe um dedinho, animais como ela já se contentam com um dedinho…mas tenha cuidado! Só tem vinte dedinhos e vinte vezes acontecem muito rápido, é só duplicar as dez, quadruplicar as cinco, você sabe do que é que eu falo….


O pijama da Gata

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

sem hostilidades geográficas

Caminham delicadamente, já noutro local mais sóbrio e diáfano que o anterior onde a recordação se prende no devorar de um fruto vermelho que lhe salpica a boca de um sabor melífluo e suprimido, os pés de uma felina incessável que se agita através de uma deliberação irreal à rendição e ao aprazimento.
A rua húmida e cálida denota um cheiro a alcatrão molhado que sensualmente vai devorando os indivíduos que nela se inserem como pequenas peças num tabuleiro onde o jogo é ilimitado.
Spike Hill avista-se a vários passos que os distanciam  mas que são rapidamente encurtados por passadas seguras e precisas, num girar de ancas muito ligeiro e sugestivo. Empurra com a mão pequena a porta de madeira alta e penetra um espaço frenético de batuques e melodias que se frisam no ar rasgado do estabelecimento em frequências altas e disformes de jazz e blues quase seriamente experimentais. O ambiente é pesado e intenso. O casaco comprido que lhe reveste as curvas delineadas é puxado por um braço vigoroso e forte de um homem de barba já branca que lhe segreda ao ouvido num sussurro lânguido:
-Ivy… - mas ela abre a boca num boleado perfeito de enlevo e segue indistinta até ao balcão, despersonalizando-se enquanto caminha num trajecto seguida de néones vermelhos que facultam o panorama underground de Spike Hill. As pernas entrelaçam-se num sentar certo e quase autónomo e o veludo macio das cuecas sente-se no entre pernas que vinca dois músculos firmes suspensos pela pressão desmedida.
O olhar do homem é insistente e atravessa o compartimento ainda que as costas voluptuosas o ignorem, mas comunicam numa ignorância tão quimérica e extraordinariamente rude.
-Ivy… - corta novamente e ela volta-se, com dois cubos de gelo frios entre a língua, desbotados pelo vermelho berrante dos lábios que se vai aniquilando. Não que não o sinta porque os corpos cansados dos dois roçam-se sob as luzes encarnadas e sobre o fumo embaçado daquele edifício complicado. Arqueia as costas perigosamente e ele aproxima as mãos só ate sentir o calor que emanam tão impetuosamente e que se dissipa num odor denso mas deliciosamente doce.
-Ivy… - ressoa novamente e ambos engolem os quarenta e oito graus de álcool cujo efeito veloz é patente logo após esse primeiro gole de muitos outros já tomados. A voz ondula e reproduz-se no ar, anexando-se às frequências improvisadas do sax e da bateria e do trompete mas é o som infalível do piano que se distingue. Já não é o homem que a nomeia, já não é a música que toca, já nem é, sequer, o whisky que se bebe. Cruzam-se várias parcelas essenciais mas só se distingue uma…Ivy.


Um exercício em Williamsburg.

domingo, 3 de novembro de 2013

os olhos de um génio

 Crystal entende-se no reflexo do espelho e compreende quem nem todas as coisas são assim tão complicadas, que a composição perfeita daquele cara é uma sorte do acaso, que o homem que a observa da cama está prestes a sair e que é só ele que lhe lê totalmente o espírito. Não se sente agredida por nenhum destes factores, não se sente desesperada pela adversidade da situação, ao invés, fita-se seriamente frente ao espelho e pensa que a singularidade da vida possui um curso muito próprio, não deve remar contra ele mas sim aprender a aliar-se. A chave para a satisfação está sempre lá e ela vai aprender a lê-la, as pessoas são todas felizes e só precisam de o compreender.
                A noite começa a pôr-se lentamente e é geralmente nesta altura que Crystal mais sente a solidão só que hoje a sua pessoa não a assusta. Calmamente começa por aplicar um creme, a base da maquilhagem, para logo depois passar para a base com cor que lhe fornece uma matiz perfeita. Aplica duas gotas de perfume no pescoço e nos pulsos e inspira o odor doce. Na cama, Joan sente a fragrância chegar-lhe como uma onda natural de ar. Basta-lhe cheirá-la, prová-la, tocar-lhe, vê-la ou ouvi-la para que imediatamente mergulhe na imensidão do seu ser. Ela move-se na cadeira e murmura qualquer coisa ele olha-a e chama-a para a cama:
-Vem cá.
Mas ela não se levanta e não lhe responde. Pega no lápis dos olhos e desenha duas linhas negras nos olhos com precisão, tornando-os compridos e exóticos, o preto que dá profundidade ao cinzento. Aplica o rímel nas pestanas que, já grandes por natureza, ficam mais espessas e completam os olhos com um magnetismo ainda mais intenso. Passa para a boca, delinea os lábios com um lápis vermelho, passa neles um batom da mesma tonalidade, voluptuosos e cheios, a boca da ruína.
-Tens os lábios de um animal perigoso.
-Tens as mãos de um doido. – diz-lhe ela, fitando-o.
-Como é que os doidos têm as mãos?
-Como as tuas. Agarram tudo com as mãos cheias, dedos rijos e duros, bonitos. Mas deixam cair sempre qualquer coisa. Às vezes deixam cair tudo.
-E as tuas mãos?
-Deixa estar as minhas mãos. Elas só tocam nas coisas, raramente as agarram.
-Não queres vir até aqui?
-Vou sentir a falta de ouvir isso.
-Vem cá.
-Pede-me só mais uma vez.
-Vem cá.
-Outra.
-Vem cá.
Crystal levanta-se e movimenta-se até à cama, a cara excelentemente composta. Joan prende-a nos braços musculados e beija-lhe a boca repetidamente para se lembrar do cheiro e do sabor dela. A porta que dá para o corredor está aberta e consegue compreender-se o corredor escuro onde um homem sobe as escadas e entra na porta correspondente ao outro apartamento. Solta-se do seu colo, abre as persianas e uma súbita e forte luz entra e fere-lhe os olhos mas ao fim de algum tempo torna-se agradável. Segue até à porta e fecha-a.
-Eles ainda querem ver. – diz Joan. – Está quase no fim.
Crystal suspira e abre a porta. Olha em redor, vê os espectadores e emociona-se por eles, depois por ela e finalmente por Sally. Acaba sempre por se considerar uma boa escolástica.
-E agora? -Joan volta o olhar para ela da cama.
-Agora vou procurar um cigarro, acendê-lo e fumá-lo.
-Como sempre.
-Vou chamar-te e vais suspirar. Vais aproximar-te e deitar-te nos meus braços.
-A teu lado.
-Vais deitar-te a meu lado. Já te disse que ficas particularmente elegante com os lábios tão vermelhos?
-Depois vou agarrar-me ao teu corpo e beijar-te a mão.
-Vou estar a fumar.
-Beijo a outra.
-Podes beijar a outra. Não te esqueças da minha mão.
-Não. São dedos muito particulares.
-Já sei. Mãos de doido.
-Vou tirar um cigarro e vou fumá-lo também. Brevemente será de noite.
-Vamos fazer amor outra vez, vou devorar-te o corpo. Depois vais levantar-te e ver a cidade. Vais pensar no nosso quarto.
-Vou comprá-lo.
-Vais comprar o nosso quarto de motel?
-Vou.
-Vais ver a cidade e vais fumar um cigarro sobre a luz verde do quarto. Vai ser uma noite igual às outras. Vais pensar na mesma tristeza.
-Em como a cidade é diferente enquanto todos dormem.
-Vou levantar-me e vestir-me, vou estar demasiado absorvido em ti para que me aproxime.
-Nós não sabemos dizer adeus.
-Não te vou dizer adeus.
-Vais sair?
-Vou sair, apanhar um táxi e vou para casa. Talvez não. Vou a pé. Quero perder-me nas ruas.
-A cidade é muito diferente quando estão todos a dormir.
-És um ser muito particular.
-Mas não tenho essas mãos.
-Não tens estas mãos.
-Eu vou acabar o meu cigarro e não te vou ver partir, a cidade vai ter-me totalmente naquele instante. Não vou ser tua, vou ser da cidade. Depois vou levantar-me e vou sentar-me no toucador.
-Vais por música?
-Não.
-Vais sentir a minha falta?
           -Ainda não. – Crystal faz uma pausa e contempla-o, tem os olhos mais bonitos, são os olhos de um génio.


O pijama da Gata, 2013

sábado, 5 de outubro de 2013

na boca de um ser insaciável

-Eu sei. – diz. – Gostarias de mim se não fosse bonita?
-Não sei.
-Não sabes?
-Não.
-Porquê?
-Não sei até que ponto isso manteria a pessoa que és, com as experiências que já tiveste, não sei até que ponto isso não te tornaria numa pessoa totalmente distinta.
-Acho que te iludes em relação à beleza.
-Adoro a coragem que tens ao dizer uma coisa dessas!
-Adoro o teu lado sombrio e periclitante!
-Porque é que continuas a vir até aqui?
-Porque me sinto confortável. Não exiges que eu seja assim tão boa.
Joan acende um cigarro.
-És uma rapariga boa mas que gosta que a achem má.
-Preciso só de me perder e deparar-me noutro sítio. Compreendes esse tipo de amnésia?
-Chego lá.
-Como agora.
-Como agora?
-Vou-me deixar ir nesta pessoa que te ama.
-Não devias fazer isso.
-Não devia fazer muita coisa. – Crystal levanta-se da cama e começa a vestir-se. – Nem tu. Que estou a fazer aqui hoje?
-Não era o que querias?
-Não assim, Joan.
-É o máximo que te consigo dar. Não tenho mais nada.
-Privas-te de ter seja mais o que for.
-És insaciável.
-Ora, quem não é?
Crystal faz o vestido azul subir-lhe pelas pernas e enquanto abotoa os botões sente os dois olhos castanhos fixá-la tristemente.
-Tu és um prazer inconfessável.
-Eu sei.
-Nunca vai mudar?
-Não sei, querido. – Crystal senta-se na cama e beija-lhe os olhos – Será que vai? Não é assim tão difícil confessares só que tu és um medroso, é esse o teu bloqueio, tens receio de te arrepender. Somos seres muito ambíguos eu sei e claro que é excitante. É muito excitante mas a ti a adrenalina dá-te medo. És um conformista.
-Quero ir visitar-te à tua casa.
-Nós já temos uma casa, vemo-nos nessa.
-Será?
-Não, pessoas como nós nunca sabem onde é a casa. És assim tão infeliz aqui?
-Tem dias.
-Responde.
-Não.
-Bem me parecia. Ou então morres de desgosto mas és demasiado conformista.
Crystal levanta-se e começa a arrastar-se em direção à porta.
-Tu vives com demasiada epinefrina. – grita-lhe ele.

            -Estou faminta pela vida.

O Pijama da Gata

domingo, 8 de setembro de 2013

falas demasiado.

-Falas demasiado, desculpa. – profere e ri-se do seu olhar esgazeado. – Sally?
-Sim – responde-lhe esta.
-Já não sei qual delas devo ser, qual devo representar neste momento.
-Estás muito cansada…e se te deitasses?
-A minha alma está cansada de tanto dormir.
-A tua alma está cansada desse gin.
-Este gin… - Crystal agita o copo entre os dedos, procura uma azeitona e com os dois dedos temulentos coloca-a entre os dentes –É só um copo de gin, preciso disto para trabalhar.
-Não precisas verdadeiramente de nada. As pessoas iludem-se com necessidades.
-Respondes-me a uma questão, Sally?
A outra assente.
-Qual delas devo ser? … Porque te ris?
As gargalhadas de Sally são maléficas e ressoam diabolicamente pelo quarto.
-Porque te ris? É de mim? Estou muito cansada, Sally, o meu ser está cansado desta adulteração de personalidade sempre tão sujeita à mudança. Mas porque te ris? Deixa-me servir mais um e podemos rir juntas… mais uma vez.
Crystal encontra Sally na solidão do dia onde a sobredosagem da sua pessoa e um vinil gasto de jazz lhe preenchem a alma. Já é muito tarde do dia seguinte à noite e nem pequeno-almoço tinha tomado. Limita-se a preparar algumas bebidas, feitas sem qualquer rigor, as quantidades de álcool incertas, e num sorriso derrotado devora-as. Vê o contorno jovem das suas linhas e deseja ser muita velha e perceber mais coisas da vida. Sabe que com o tempo vem uma grande maturidade emocional e sente em todo o seu corpo a necessidade de que esse amadurecimento ocorra rapidamente. O colapso emocional que está a sofrer vai para além de qualquer coisa que jamais experimentara. Sente-se como se os seus pensamentos tivessem sido violados, a magnitude e a tristeza dos seus olhos é imensurável e, numa pose fixa, observa a sua silhueta no espelho e comove-se com o sofrimento que se lê nos seus olhos.
-Nós não controlamos isto, é isto que nos controla a nós.
-Isto o quê, Crystal?
-A criação! O que haveria de ser. Não somos nós que controlamos a criação, é a criação que nos controla a nós. Entende bem a estupidez deste diálogo. Já estás tão entranhada que não preciso de te dizer isto.
-Crystal…
-O que é Sally? Não controlamos a vida, a vida é que nos controla a nós.
-Vais dizer-me que não gostas nem um bocadinho que aquele homem tenha medo de ti?
-Que queres dizer?
-Que isso quer dizer qualquer coisa, não quer?
-Talvez…Sim…acho que quer.
-Quer dizer demasiado.

-Já és uma personagem muito completa.

O Pijama da Gata

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Estou cansada de que o tempo passe.

-No que estás a pensar?
-Não ias acreditar se to dissesse.
-O quê?
-Estou a ter o meu tempo! – grita ela, por cima da melodia frenética do saxofone. Entreolham-se através de uma iluminação avermelhada e muito escassa, numa frequência demasiado baixa, são dois olhos que adquirem animalidade.
-Queres ir até qualquer sítio?
-Não!
-Porque é que me chamaste até aqui?
-Queria ver-te.
Joan sorri cinicamente.
-Só ver-me?
-Só ver-te. Sobretudo ver-te.
-Significa que não vamos sair daqui?
-Não sei. Não sei o que vamos fazer.
Joan tira um cigarro do bolso e acende-o, perscruta os músicos com o olhar e recorda-se da primeira vez que tocou no Harry’s. A voz de Crystal chega-lhe aguda, por entre as notas musicais.
-Não é curioso?
-O quê?
-Não saber até onde isto vai dar. É misterioso, é emocionante.
-Não quero saber, Crystal.
-Do quê?
-Do mistério! Quero levar-te para casa. Vamos!
-Ainda não.
-Quando?
-Quando a noite se cansar.
-A noite nunca se cansa.
-Quando eu me cansar então.
-Tu nunca te cansas.
-Porque é que estás a ser tão impaciente?
Joan fuma o cigarro e tenta abstrair-se na música enquanto Crystal sorri e agita suavemente a cabeça no ar melodioso do espaço, os caracóis que fez em casa em movimentos contínuos no topo da sua cabeça, num passe quase robótico. A voz de Joan grita novamente por cima da música e ela dá-lhe atenção:
-Estás a actuar?
-Não.
-Então vamos embora.
-Não.
-Queres estar quentinha?
Joan observa que lhe cativou a atenção, os dois olhos cinzentos a acariciarem os seus debaixo da luz escarlate.
-Vamos voltar?
-Claro que não.
-Para onde vamos?
-Para casa.
-Para a tua casa?
-Não, para a tua.
-Quando é que me levas até à tua casa?
-Um dia.
-Que dia?
-Qualquer dia.
-Não tenho a certeza de que isso é uma promessa.
-Não o é.
Crystal tira um cigarro e acende-o, deixa que o pescoço tombe para trás enquanto expele o fumo luminosamente avermelhado.
-Ouve, porque é que não queres vir?
-Os atores têm de se despir totalmente de quem são. É uma tarefa difícil.
-Ok. Ficamos.
Os músicos concluem o espetáculo e após os aplausos deixam o palco exaustos. Seguindo-os com o olhar, Crystal vê um deles limpar o suor a um pano branco e beber de uma garrafa de água pequena, o outro, dirigir-se ao bar e pedir um bourbon. Outro grupo de músicos sobe para o palco e uma batida lenta e orgânica ocupa o espaço, faz-se ressoar lentamente, num arrastar sensual de voluptuosidade. Instintivamente Crystal puxa de outro cigarro e Joan agarra-lhe a mão sobre o tampo da mesa.
-Ouve, vamos dançar.
-Está bem.
Joan e Crystal levantam-se, o grande chapéu dela a adornar a sua silhueta, sensualmente marcada pela luz e de movimentos passivos e bamboleantes, agitam-se à melodia que os músicos criam. Joan puxa-a de encontro a si e sentindo-lhe os contornos rijos do corpo inspira de satisfação e encosta o queixo delicadamente no ombro dela.
-Porque é que te comportas assim? – pergunta-lhe de timbre derrotado.
-Se eu mantivesse o meu mistério isto ia crescer e quando davas por ti já ias estar bastante envolvido. Era o que faria se te quisesse prender.
-Não prenderias.
-Tens a atitude certa, saberias como reagir e como me responder e seria certo que te prendesse.
-Ai sim? – profere ele num sussurro languido, as duas faces a esfregarem-se na parede invisível que os separa, os olhos semicerrados quase em êxtase da proximidade  dos dois corpos, que se tocam só em certa medida, com limitações – e porquê?
-Porque ias corresponder ao meu papel.
-Às vezes não te compreendo.
-Às vezes não me compreendo a mim mesma.
-Muito frequentemente?
-Muito.
-Deixa-me levar-te para casa.
-E depois?
-Quero uivar contigo.
-Vou romper em chamas.
-Deixa-me levar-te, deixa-me, deixa-me. Não queres gritar?
-Queres ouvir aquilo que sinto ou o que é apropriado dizer?
Joan fita-a na luz purpureja, acende um cigarro e coloca-lho teatralmente nos lábios, ela aperta os dois núcleos de carne rosácea no filtro do cigarro, cerra os olhos e inspira o fumo com determinação. A beleza enigmática dela consome-o.
-Não saberia o que dizer. – geme ela e uma lágrima rola-lhe dos olhos. Joan percebe-a porque as luzes foram alternadas e piscam em dois tons divergentes repartindo aquele choro subtil em vários fragmentos de imagem que se lhe instauram na memória com deceção.

-Não saberia também. – diz ele e sente que aquelas palavras não são suas. – Quero ver-te e tocar-te.


O Pijama da Gata, 2013

domingo, 16 de junho de 2013

Não enterrado, não à superfície, só lá dentro

Crystal fumou um cigarro e brincou com a caixa de fósforos que tinha em cima do lençol branco.
-Como é que nós parámos aqui? Não me recordo nunca de ter sido tão inusitada com um homem.
-Quando penso em ti, imagino-te terrivelmente inusitada, seja com que criatura for, não me parece que representes uma imagem comum a qualquer mente civilizada. 
-Achas que sou incivilizada?
-Peculiar…
-Peculiar é uma forma muito simpática de me chamares louca! Obrigada, senhor, você também é um tanto…peculiar.
-Tenho consciência disso.
-O que é que te atrai tanto em mim? Às vezes não compreendo os homens. Mostra-me o que é que gostas em mim.
-Para além dessa figura extraordinária?
-Incluído essa figura. Temos imagens muito distorcidas de nós ao espelho.
-Gosto da maturidade do teu pensamento, é bastante inusual para uma rapariga nova, gosto da forma como te entendes e te tens em consideração.
-Vá lá…
-És o mocho fora da floresta.
-Um macaco em lingerie vermelha.
-A mulher que vê televisão na banheira.
-Isso é muito dandy.
-És um pouco dandy.
-E feminina? Houve uma altura em que eu quis ser um rapaz, mas agora estou terrivelmente satisfeita de ser mulher. Não queria que fosse de outra forma.
-Porquê um homem?
-Porque vocês têm melhor presença. Um homem é sempre uma melhor presença.
-As mulheres são bastante mais presenciais.
-Só as mulheres a sério, essas superam os homens em qualquer sentido.
-É muito intimidante para um homem sentir que é superado por uma mulher assim.
-Somos corpos em evolução, é natural que assim seja, movem-se e evoluem mais rápido. Mas sabe-vos bem a devoção, não sabe?
-Muito egotismo.
-Que horas são?
-Muito cedo, loirinha.
-Cedo, antes da hora de comer?
-Muito antes dessa hora.
-Quando te encontro neste sítio, perco a noção do tempo e o espaço desmembra-se. É um local tão envolvente que adquire uma própria velocidade, uma própria unidade existencial. Se não fossem as ocasionais indicações de luz, eu ia achar que estávamos sempre presos no mesmo período de tempo.
-Isso é muito desconcertante.
-Não, não é. É curioso. Podia ficar aqui toda a minha vida, que não dava por isso.
-Não saberíamos do que falar durante tanto tempo.
-Não precisávamos. Tu e eu somos daquelas pessoas que se entendem melhor em silêncio. As palavras por vezes possuem o dom de estragar absolutamente tudo. Dão-nos um grande pontapé na integridade, queremos dizer tanta coisa e só saí florido, a essência fica cá toda por espremer.
-Estou muito curioso relativamente ao teu funcionamento.
-Não é muito complexo. Não me importo muito de ficar doente e tenho o terrível hábito de preferir-me em oposição a todos os outros seres humanos. E não gosto de falar demasiado.
-Mas falas demasiado.
-Eu sei. É por isso que não gosto. Ninguém reprova aquilo que nunca fez. É amargura depois do abuso. Apetece-me um cigarro.
-Apetece-me estar dentro de ti.
-Sinto-me estranha em relação a isso.
-Não enterrado, não à superfície, só lá dentro.

-Primeiro deixa-me fumar o meu cigarro e pensar sobre isto.

O Pijama da Gata, 2013

segunda-feira, 11 de março de 2013

those fucking legs


Eu percebia tudo mas ela não. Ou talvez fosse ela quem percebesse tudo e eu não. O que conta é que foi aí que ficámos. E uns tempos mais tarde ela saiu da minha casa e eu queria que ela se fosse embora porque não aguentava mais com aquele cheiro. Era um odor demasiado…matreiro. Ficava empregue nos lençóis, nas roupas que usava (mesmo após a sua lavagem, e eu bem tentava) e no ar que se fixava nas paredes, entranhado. Cheirava tudo a ela e a febre era latente. Arrastava-me languidamente pelas divisões da casa e esfregava-me, tal gata com cio. Demorou algum tempo até sair esse fedor. Até ficar completamente aniilado. E depois foi-me permitido que vivesse em paz mas sempre consumida por uma ideia, que não era concretamente uma ideia, mais uma imagem, uma lembrança, de a ver passar a sala, discretamente nas pontas dos pés para não fazer barulho, soprar-me um beijo silencioso com o dedo esguio encostado aos lábios carnudos e desaparecer pelo vão das escadas. E eu já sabia…oh! Sabia tão bem! Onde é que ela estaria, com as meias enroladas nas mãos, a subir pelas pernas, através da pele, o olhar muito estreito e observador que ela me dirigia “Eu sei que estás aí”, “Eu sei que me viste” para depois desaparecer porque eu apagava a luz. Não precisava de ver. “Fica aí dentro.”, quase lhe dizia, “não há necessidade de vires fazer isso aqui para fora. Esconde-te. Deixa-me.” E passava novamente para escovar os dentes e observar-me ao espelho; as feições da face sobre outras feições da face e puxava a minha meia preta também. Sabem aquelas pessoas que conhecemos durante muito tempo mas que quando chega a uma altura nos apercebemos de que não sabemos quase nada sobre elas porque estávamos tão tremendamente apaixonados que nos esquecemos do que é que no meio daquilo tudo era o amor e o que era de facto a realidade? Ela era como uma canção triste de Jazz, pode falar sobre muita coisa, mas é repleta de brusca nostalgia e choramos sempre.


 Conto 9: Black Velvet Canadian Whiskey, História de uma Garrafa de Whisky

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

tinha pedido sem gelo


-Criar aproxima as pessoas. Concebemos uma viagem que nunca aconteceu mas já voltámos e estamos novamente no quarto onde o único movimento é realizado pela ventoinha. Ele enche um copo de whisky e saboreia-o.
-Não é para arrancar, é para celebrar o arranque. Ela observa-me, observamo-nos em silêncio.
-Encho também eu um copo e vejo o líquido verter e cintilar. Brilha ao lado de dois cubos de gelo transparentes que se diluem. Tinha pedido sem gelo. Devo bebê-lo rápido para que a sua essência não se dissipe. A atmosfera do quarto parece mais leve mas ainda condensada. Não é dos sítios, nem do ar, é das pessoas. É só de nós os dois. Dou um gole no Laphroaig e o som implacável dos lábios a sorverem a bebida anexa-se ao da língua a envolvê-lo e da garganta a fazê-lo deslizar, ruidosamente, até ao estômago. É o único som que aniquila os outros, o da ausência de palavras, o da solidão de um ser a beber sozinho na presença de outro que também bebe mas não faz som. Era como se não existisse mais nada.  




Conto 5: Laphroaig, História de uma Garrafa de Whisky

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

U turn


Ele encostou o braço no arco da parede da sua sala e a palidez daquela pele de onde o bronzeado se ia cada vez mais extinguido contrastava com o conjunto de recortes que decoravam a parede. Ela mirava-o pela altura do sofá e a primeira coisa que via se olhasse em frente eram os joelhos e as coxas musculadas. Tinha um corpo muito trabalhado, robusto, com um tronco proporcional ao resto do corpo, os braços e os ombros largos, as mãos grandes, de homem, o abdómen definido. 
Com a mão que tinha livre segurava um cigarro que levava à boca e exalava o fumo na sua direcção. A sala era preenchida pelo vapor quente das suas respirações. Conseguia observar os dedos dos pés descalços e as unhas pintadas de azul negro, de pequeno porte, pés delicados. Os seios rolavam-lhe para os lados e o ventre era liso e aclamativo.
-Não podemos fazer isto tantas vezes, loirinha. Vou-me apegar a ti e tu não precisas de um rapaz como eu atrás de ti.
Ela sorriu e limpou um bocadinho da saliva dele que lhe molhava o mamilo resfriado. Não era bem um sorriso que queria expressar. Sentia a efemeridade daquele momento a passar-lhe ao lado.
-Deixa-me fumar contigo.
Ele desapoiou-se da parede e caminhou na direcção dela. Estendeu-lhe o cigarro aos lábios e constatou a beleza de uma rapariga a fechar os olhos e a inspirar do fumo de um cigarro e depois a exalá-lo. Levantou-lhe a cabeça com a mão, de forma a sentar-se e a pô-la no seu colo. Os olhos cinzentos pendiam ao lado do seu pénis flácido e tudo se encaixava num panorama. Deu-lhe o cigarro para as mãos e afagou-lhe as maçãs do rosto repetidamente, conseguia projectar-se a fazê-lo mais frequentemente, porém sabia que não iriam nunca passar daquilo.

 Conto 11 - História de uma Garrafa de Whisky