-A dor envelhece as pessoas,
arrasta-as para o cruel destino que é a fatalidade. Gostaria de me ter sentido
eterna durante mais tempo, talvez um pouco antes de me surgirem as primeiras
rugas na cara, ainda tímidas, a vincarem o que seriam os meus olhos cinzentos
tímidos, ou a contornarem as expressões do meu sorriso, no meu peito, em redor
dos mamilos, nos nós dos dedos, a revelarem a decadência da idade. Uma mulher
pode mudar tudo mas não altera as mãos. Sinto-me ficar velha, sinto-me perder
os últimos raios da juventude, da inocência. Penso que se terá extinguido até à
sua última réstia. Foi impiedoso, cruel e desnecessário e eu deveria viver sem
conhecer esta sensação de envelhecer, ou pelo menos, desconhecer que pode ser
uma sensação, tão precocemente. E não vos culpo mas também não vos admiro.
Admiro-te mas não por isso, não por me protegerem da decrepitação do meu
espírito.
-Ela tem de perceber e sinto a necessidade de lhe explicar mais
justificadamente o porquê de não conseguirmos dialogar, de não lhe conseguir
expor o que sinto, a minha própria incapacidade de me aproximar dela. Tens
de perceber. Um pai não se aproxima porque os pais nunca sabem a verdadeira
dimensão do caminho a percorrer e parece ser tremendamente distante.
-Incompreensivelmente curto.
-Não poderia haver mais
intimidade que isto, a nossa exposição cruelmente ausente de tabus. Se te
revelas, profundamente escondes tudo o resto. Tens um espírito que paira leve
sobre as nossas cabeças e não permites que se revele. Não me temas. Tens que
ter conhecimento de que os pais nunca sabem. Nunca sabem nada. O porquê de não
conseguires falar é me tanto um mistério como a causa para não forçar esse abeiramento.
Os pais nunca sabem. O caminho pode ser tão curto mas também tão longínquo. Ouço-a lacrimejar. Limpa as duas lágrimas
que lhe rolam pela cara. Observa-me do canto do quarto.
-Eu queria ter a capacidade de te
contar tudo.
-Assim tão simples?
-Assim tão simples. Contar-te
tudo e pronto. Consigo detetar-lhe na
expressão dos olhos aquela mágoa que noutras ocasiões já havia presenciado. Não
é o olhar da intolerância, ou da incompreensão, é o olhar da misericórdia. Não
me castiga, nem me repreende, nem me afasta, chora só, ao de leve, por ser
incapaz de agir, por não conseguir chegar até mim, por sentir o primeiro odor
da inércia, por estar estagnada, com tanta imobilidade. Não somos assim tão
diferentes. Lembras-te do que nos trouxe até aqui?
-A condição arbitrária que nos
fez percorrer estes quilómetros foi a distância que delimitava duas pessoas que
não deveriam conhecer essa distância. Sempre foste muito próxima de mim, sempre
te soubeste expressar, até quando me confessaste que simpatizavas mais comigo
do que com a mãe, eras frontal e honesta.
-E agora um mudo.
-Pensámos que o whisky e os
cigarros iriam resolver. Usar os combustíveis para queimar. O quarto fechado,
ia começar o fogo. Longe de tudo, noutra vida. Só tu e eu e carburantes.
-Oh…já me recordo…vínhamos criar
a nossa zona de transferência, onde duas pessoas diferentemente sós se
conseguem ausentar e apresentar e projetar e entender. Uma zona para os nossos
espíritos.
-Recomeça. Volta atrás. O que é
que pensas do amor?
-São as questões mais simples que
criam grandes impasses entre os seres racionais.
-Quero reunir todos os teus sons.
Quero que exponhas o som da consciência, o som da culpa, o da obsessão. Quero
que esta zona se crie naturalmente.
-E que chore?
-Podes chorar. Eu sei que choras.
Conto 5: Laphroaig História de uma Garrafa de Whisky