You have to ask yourself what brought the person to this point

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

a nu. naked.


-A dor envelhece as pessoas, arrasta-as para o cruel destino que é a fatalidade. Gostaria de me ter sentido eterna durante mais tempo, talvez um pouco antes de me surgirem as primeiras rugas na cara, ainda tímidas, a vincarem o que seriam os meus olhos cinzentos tímidos, ou a contornarem as expressões do meu sorriso, no meu peito, em redor dos mamilos, nos nós dos dedos, a revelarem a decadência da idade. Uma mulher pode mudar tudo mas não altera as mãos. Sinto-me ficar velha, sinto-me perder os últimos raios da juventude, da inocência. Penso que se terá extinguido até à sua última réstia. Foi impiedoso, cruel e desnecessário e eu deveria viver sem conhecer esta sensação de envelhecer, ou pelo menos, desconhecer que pode ser uma sensação, tão precocemente. E não vos culpo mas também não vos admiro. Admiro-te mas não por isso, não por me protegerem da decrepitação do meu espírito. 

-Ela tem de perceber e sinto a necessidade de lhe explicar mais justificadamente o porquê de não conseguirmos dialogar, de não lhe conseguir expor o que sinto, a minha própria incapacidade de me aproximar dela. Tens de perceber. Um pai não se aproxima porque os pais nunca sabem a verdadeira dimensão do caminho a percorrer e parece ser tremendamente distante.

-Incompreensivelmente curto.

-Não poderia haver mais intimidade que isto, a nossa exposição cruelmente ausente de tabus. Se te revelas, profundamente escondes tudo o resto. Tens um espírito que paira leve sobre as nossas cabeças e não permites que se revele. Não me temas. Tens que ter conhecimento de que os pais nunca sabem. Nunca sabem nada. O porquê de não conseguires falar é me tanto um mistério como a causa para não forçar esse abeiramento. Os pais nunca sabem. O caminho pode ser tão curto mas também tão longínquo. Ouço-a lacrimejar. Limpa as duas lágrimas que lhe rolam pela cara. Observa-me do canto do quarto.

-Eu queria ter a capacidade de te contar tudo.

-Assim tão simples?

-Assim tão simples. Contar-te tudo e pronto. Consigo detetar-lhe na expressão dos olhos aquela mágoa que noutras ocasiões já havia presenciado. Não é o olhar da intolerância, ou da incompreensão, é o olhar da misericórdia. Não me castiga, nem me repreende, nem me afasta, chora só, ao de leve, por ser incapaz de agir, por não conseguir chegar até mim, por sentir o primeiro odor da inércia, por estar estagnada, com tanta imobilidade. Não somos assim tão diferentes. Lembras-te do que nos trouxe até aqui?

-A condição arbitrária que nos fez percorrer estes quilómetros foi a distância que delimitava duas pessoas que não deveriam conhecer essa distância. Sempre foste muito próxima de mim, sempre te soubeste expressar, até quando me confessaste que simpatizavas mais comigo do que com a mãe, eras frontal e honesta.

-E agora um mudo.

-Pensámos que o whisky e os cigarros iriam resolver. Usar os combustíveis para queimar. O quarto fechado, ia começar o fogo. Longe de tudo, noutra vida. Só tu e eu e carburantes.

-Oh…já me recordo…vínhamos criar a nossa zona de transferência, onde duas pessoas diferentemente sós se conseguem ausentar e apresentar e projetar e entender. Uma zona para os nossos espíritos.

-Recomeça. Volta atrás. O que é que pensas do amor?

-São as questões mais simples que criam grandes impasses entre os seres racionais.

-Quero reunir todos os teus sons. Quero que exponhas o som da consciência, o som da culpa, o da obsessão. Quero que esta zona se crie naturalmente.

-E que chore?
-Podes chorar. Eu sei que choras.
 
 
Conto 5: Laphroaig História de uma Garrafa de Whisky

domingo, 9 de setembro de 2012

mad dogs


O quarto escureceu. Alguém se movimenta na escuridão diante de mim. Vejo as sombras esguias e indefinidas a formarem-se no painel negro que me é perceptível e murmuro dois ou três sons antes de dar um passo em falso e o tentar agarrar. A sombra. Espirra. É um espirro muito ligeiro e propositadamente inanalisável. Pela densidade do ar diria que se trata de um homem, mas os movimentos são notoriamente femininos. Escuta-se um arrastar de tecido pela superfície da pele e é tudo demasiado sensual.

Há uma cadela que se rebola pela minha cama e diz que quando quer se consegue transformar em gata, digo-lhe que sou um céptico e depois ela faz com que eu não me mexa mais da cama. Nem sequer me deixa chegar ao pé do meu saxofone, a cadelinha. Diz que ali é tudo dela e que se quero continuar a vê-la tenho de deixar de ser narcisista. Não são as minhas trombas a única coisa de relevante no mundo. Digo-lhe que nem sequer sei o que é que é relevante. Tipo a palavra… relevante…Depois imploro mais um bocadinho e digo que isto é deveras importante e que quando um músico sente a música a fluir-lhe pelo corpo ele tem de a agarrar e de fazer amor com ela para que ela não se vá embora como uma cadelinha ingrata. Ela diz que não se importa, que quem já tem uma cadelinha não precisa de duas. Mas ela não sabe que quem tem uma cadelinha precisa sempre de mais do que uma.
 
 
Conto 6: Ardbeg, História de uma Garrafa de Whisky