-Falas demasiado, desculpa. –
profere e ri-se do seu olhar esgazeado. – Sally?
-Sim – responde-lhe esta.
-Já não sei qual delas devo ser,
qual devo representar neste momento.
-Estás muito cansada…e se te
deitasses?
-A minha alma está cansada de
tanto dormir.
-A tua alma está cansada desse
gin.
-Este gin… - Crystal agita o copo
entre os dedos, procura uma azeitona e com os dois dedos temulentos coloca-a
entre os dentes –É só um copo de gin, preciso disto para trabalhar.
-Não precisas verdadeiramente de
nada. As pessoas iludem-se com necessidades.
-Respondes-me a uma questão,
Sally?
A outra assente.
-Qual delas devo ser? … Porque te
ris?
As gargalhadas de Sally são
maléficas e ressoam diabolicamente pelo quarto.
-Porque te ris? É de mim? Estou
muito cansada, Sally, o meu ser está cansado desta adulteração de personalidade
sempre tão sujeita à mudança. Mas porque te ris? Deixa-me servir mais um e
podemos rir juntas… mais uma vez.
Crystal encontra Sally na solidão
do dia onde a sobredosagem da sua pessoa e um vinil gasto de jazz lhe preenchem
a alma. Já é muito tarde do dia seguinte à noite e nem pequeno-almoço tinha
tomado. Limita-se a preparar algumas bebidas, feitas sem qualquer rigor, as
quantidades de álcool incertas, e num sorriso derrotado devora-as. Vê o
contorno jovem das suas linhas e deseja ser muita velha e perceber mais coisas
da vida. Sabe que com o tempo vem uma grande maturidade emocional e sente em todo
o seu corpo a necessidade de que esse amadurecimento ocorra rapidamente. O
colapso emocional que está a sofrer vai para além de qualquer coisa que jamais
experimentara. Sente-se como se os seus pensamentos tivessem sido violados, a
magnitude e a tristeza dos seus olhos é imensurável e, numa pose fixa, observa
a sua silhueta no espelho e comove-se com o sofrimento que se lê nos seus
olhos.
-Nós não controlamos isto, é isto
que nos controla a nós.
-Isto o quê, Crystal?
-A criação! O que haveria de ser.
Não somos nós que controlamos a criação, é a criação que nos controla a nós.
Entende bem a estupidez deste diálogo. Já estás tão entranhada que não preciso
de te dizer isto.
-Crystal…
-O que é Sally? Não controlamos a
vida, a vida é que nos controla a nós.
-Vais dizer-me que não gostas nem
um bocadinho que aquele homem tenha medo de ti?
-Que queres dizer?
-Que isso quer dizer qualquer
coisa, não quer?
-Talvez…Sim…acho que quer.
-Quer dizer demasiado.
-Já és uma personagem muito
completa.
O Pijama da Gata