Ele atende uma mulher estrangeira. Ele procura sempre atendê-las, relacionar-se assim com desconhecidas completa-o, de certa forma.
O ano 2000
You have to ask yourself what brought the person to this point
terça-feira, 27 de abril de 2010
quarta-feira, 14 de abril de 2010
O pé da Lolita
O pai observa-a pela faixa de luz da porta do quarto, com os olhos consumidos por tal visão. Vê o modo como o verniz se apodera da unha total e a torna vermelha, exactamente da cor com que os seus lábios são pintados mais tarde. Ele sabe que ela não se apercebeu da sua presença e delira pelo facto de estar ali, sem ter de estar ali. O seu robe de cetim laranja e creme roça-lhe na coxa de pele macia e a luz incide sobre as madeixas loiras do seu cabelo grisalho. Os olhos também parecem luminosos, mais verdes, mais apaixonados. Mas é nesse pé, é nesse pé que se centra toda a beleza. Nesse pé em que o vermelho se apodera das unhas, nesse pé que subindo dá origem a uma perna, de musculo firme e a pele suavemente bronzeada. Nem ele sabe se tem a ver com o vermelho do verniz, ou se se trata da forma gentil do pé, mas algo o seduz imensamente. "Nesse pé de princesa onde tu pintas, o vermelho nas unhas, e a tristeza" Ele sente a tentação proveniente da imagem que observa minuciosamente e afasta-se da porta do quarto e dos perfumes doces que daí emanam. Avança até ao bar da casa e serve um whisky com gelo, acende um cigarro e abre as duas portadas da varanda. As lufadas de ar fresco entram e elucidam-lhe a cabeça. Têm consciência de estar mais calmo, menos viciado nos pés de menina que ela ainda é, no cheiro do seu perfume doce, na forma perfeita e rigorosa dos seus pequenos pés. "Saio p'rà rua a respirar os ácidos, perfumes e solto-me, mesquinho, já de ti!" Bebe do whisky e fuma o cigarro quando um ruído forte o faz voltar a cabeça. É quando a vê, unicamente de roupão, com o cabelo loiro e as unhas vermelhas a secar. Passa pelo corredor e sorri-lhe envergonhadamente, dirigindo-se de seguida à cozinha para preparar um chá de frutos vermelhos. Novamente imagens fortes lhe invadem a mente, imagens dela, nesse mesmo roupão, com certas partes do corpo a descoberto, com as maçãs do rosto rosáceas, o olhar inebriado nessa manhã de calor. Depois, o cheiro do verniz a secar apodera-se do salão e ele delira. Vê-se forçado a fechar os olhos e inspirá-lo com exacta precisão. Quando os abre, depara-se com ela especada, bem à sua frente, com os olhos postos no seu ar de infame prazer. A sua pequena boca aberta num círculo fecha-se rapidamente e mantém uma expressão rígida e tentadora, como apenas ela sabe fazer. Avança entre ziguezagues para o pai apaixonado e estende-lhe o pé de unhas pintadas ainda frescas aguardando prova de tal desejo. O pai fita-a e endoidece. Num impulso exagerado, coloca-se de joelhos e beija-lhe o pé, apaixonado. O cheiro da sua pele macia e doce invade-lhe os orgãos, torna-se a única coisa que ele poderá cheirar durante dias. Depois, apercebendo-se do quanto ferozmente lhe agarra e beija o pé larga-o, de repente. As marcas dos dedos vão-se evaporando com o tempo. Fitam-se durante momentos. A filha afasta-se e vira-lhe as costas. O pé tem ainda as marcas dos dedos do pai, o robe abana com o vento que entra da janela. Um desejo cresce dentro do pai. "Nesse pé de princesa que eu beijei." Acabou-se. Deixa-se cair para o sofá e pensa no que acabou de cometer. Incesto. Sente a vontade incontrolável de chorar e beber mais whisky. Viverá para sempre sozinho neste salão, para todo o sempre, com perfumes doces a passaram constantemente ao seu lado, com o cheiro dos frutos vermelhos ainda quentes, com o verniz a secar. E, novamente, com a memória de um outro beijo no pé, nunca ultrapassariam tal acção. "E nas cinzas, o desejo sabe arder. Nesse pé de princesa das Astúrias, crescem às vezes acordes de samba." Era assim, amor deste, entre pai e filha, amor de beijar o pé, amor de amar o pé.
Nesse pé..., 2008, intercalado com excertos do livro A Noiva das Astúrias de Eduardo Guerra Carneiro
Nesse pé..., 2008, intercalado com excertos do livro A Noiva das Astúrias de Eduardo Guerra Carneiro
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